O Pão

Um homem e uma mulher estavam presos cada um em uma gaiola, um de frente para o outro. 

Era uma boa gaiola, tinha comida, janela emperrada e cama confortável para dormir. 

Mulher: Hoje eu pensei que você fosse sair.
Homem: Não consegui. Tive medo.
Mulher: Medo de quê?
Homem: Medo de sair e a porta bater. E não abrir nunca mais.
Mulher: É o meu medo também. Mas aqui parece que me falta o ar.
Homem: Como você sabe?
Mulher: Eu já saí uma vez. Não lembra? Naquele dia que você me acordou gritando.

Homem: Você viu... Tudo?
Mulher: Vi as raízes da árvore, crescendo para o alto. 
Homem: Você não sabe o que diz. Tudo isto é mentira. Não existe árvore, nem raízes para o alto.
Mulher: Onde nós estamos?
Homem: Em qualquer lugar.
Mulher: Por que?
Homem: Porque vivemos, ora.
Mulher: Isto é viver? Quem te contou?
Homem: Aquele homem.
Mulher: Aquele que passa? Quem é ele?
Homem: Você não sabe? Ele é o guarda daqui.
Mulher: Estou com frio, um frio que não passa.
Homem: Posso segurar suas mãos e aquecê-las?
Mulher: Você quer fazer isto de novo?
Homem: Quero.
Mulher: Mas... Eu e você sabemos que isto é perigoso.
Homem: Por que?
Mulher: Porque desde que você começou a segurar minhas mãos eu comecei a pensar em fazer coisas subversivas, coisas proibidas que eles não deixam fazer. Eu fiquei muito forte e interessada em explorar tudo o que existe. Pensei que usava uns sapatos que se moviam e me levavam para todos os lugares. E o calor começou a me consumir inteiramente.
Homem: E você gosta de sentir isto?
Mulher: É como acordar. Dói, mas é de verdade. Não é sonho. E quando isso acontece me dá muita vontade de abrir a porta.
Homem: Podíamos abrir a porta juntos. Só uma frestinha.
Mulher: É. Podíamos.
Homem: Você é muito bonita. Tem um nome?
Mulher: Nunca tive.
Homem: Todas as coisas precisam de nome.
Mulher: É que eu olhei para trás, não tive fé. E então todos se esqueceram da minha existência. Qual o seu nome?
Homem: Lembravam tanto do meu nome, me chamavam toda hora! Acho que esqueci. Talvez seja José.
Mulher: José, eu me lembro de você de muito, muito tempo atrás. Desci as escadarias, estava correndo da criança que mataram, a criança que não aceitou a morte e começou a me perseguir quando viu que eu ainda respirava e ela não. E então finalmente eu te vi lá embaixo e tudo passou. Obrigada.
Homem: Eu simplesmente não posso te ver sofrendo assim. O que é isto?
Mulher: Isto o que?
Homem: Esta vontade estranha de sair de dentro de mim para te encontrar.
Mulher: Quero abrir a porta. Aqui é muito longe de você. 
Guarda: (Grita de fora da janela) Hora de dormir e sem conversa! Que sorte vocês estarem aí, protegidos. Sorte que vocês têm de não terem que proteger ninguém de monstros, animais peçonhentos e toda esta lama pútrida!
Mulher (Sussurrando): Ele foi embora!
Homem: Eu não vou parar de te olhar e de te ouvir só porque o guarda mandou.
Mulher: Preciso te contar uma coisa. Quando eu saí... 
Homem: Você saiu! Essa é a minha garota!
Mulher: Ah, José... Eu segui um canto, uma voz de mulher. Ela segurava um menino pequeno nos braços. 
E então ela me deu para segurar o menino dela porque precisou esmagar uma serpente que passava. Ela brilhava. Seu menino também. Como o sol. 
Quando o tomei nos braços percebi que ele estava querendo me dizer alguma coisa, mas não falava, só olhava no fundo dos meus olhos e eu entendia tudo o que ele me dizia através do seu sorriso. Ele sorria com os olhos.
Homem: E o que ele queria?
Mulher: Ele queria me amar e queria que eu enxergasse que era toda feita deste amor que ele me dava
Homem: E você acreditou nele?
Mulher: Naquela hora não. Achei que fosse sonho. Engraçado, ele me deu um pedaço de pão e disse: fica comigo.
Homem: E agora? Você acredita? O que mudou?
Mulher: Não sei exatamente. Se você não tivesse batido na minha porta com força, se você continuasse aí isolado, possivelmente eu continuaria sem existir para ninguém, não teria tido coragem de abrir a porta.
Homem: Bati na sua porta porque estava com sede. Dá-me de beber.
Mulher: Você sussurra em meus ouvidos o amor que aquele menino pequeno me prometeu quando sorriu com os olhos.
Homem: E isso é bom?
Mulher: É água viva, não é água parada de poço.
Homem: Tenho fome. Dá-me de comer. 

A Mulher pegou o pão que ganhara do Menino e o dividiu com o Homem. E veio o dilúvio que a tudo cobriu.


FIM


Kyrie, eleison
Christe, eleison
Kyrie, eleison




















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