Entretempo no Sertão
Inácio
já estava bem cansado às cinco da manhã de tanto arrancar com as mãos e a
enxada raízes da macaxeira para depois lavar e vender na feira antes das sete
horas do dia. Foi quando sentiu um distante aroma de rosas.
O
menino de onze anos nem parecia ter chegado aos oito de tão mirrado que era.
Mas tinha força, ah, isso tinha, força que vinha de algum canto de dentro, mas
que não podia ser daquele corpo mal-acabado e desnutrido.
-Oxente!
Vereda da Nascente é bem umas três horas de a pé! Isto é coisa da minha cabeça, lombeira, devia ter comido a papa de sagu que vovó deixou pronta.
- Esta flor sertaneja é tão bela quanto o lírio do Oriente. Não acha Inácio? Nem
Salomão jamais se vestiu como eles. Esqueça desta feira por agora e me dê um
pouquinho de atenção.
Quando
chegou na Nascente e avistou o poço, olhou de relance para as canelas finas sem
nenhum arranhão sequer. Já agora tremia com uma quentura no coração e um arrepio
na espinha. E então a viu como se vê qualquer ente que vive, embora o vestido dela
parecesse dançar naquele tempo parado, silencioso, quente e sem qualquer
promessa de vento.
A jovem mulher sorriu um sorriso que
se abria como o sol quando vai nascendo sobre a linha do mar.
-Fico muito feliz com o seu elogio, Inácio. Mas eu existo, de verdade.
-Nunca vi uma coroa como esta que a senhora está usando. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onde, doze! Uma dúzia de estrelas!
-Ganhei
no dia que meu filho nasceu. Neste dia todo o amor que estava em mim foi para o
filho que segurei nos braços. Ora, ora, mas o amor já era todo dele! E quanto
mais eu o amava, mais tinha deste fogo dentro de mim, não se acabava.
-A
senhora, é?
-Sim,
sou eu. A Mãe.
-Não mereço receber tanta formosura,
tanta luz! Sou um menino ruim, tenho preguiça de estudar e de rezar. Será que a
senhora não se enganou? Senhora, seus pés, seus pés, estão sangrando!
-Uma coisa de cada vez, menino! Já,
já estas feridas secam. Gosto de sentir tudo o que existe abaixo dos meus pés. É
um hábito um pouco estranho, eu sei. Inácio, pense um pouco: você acha que os
meninos da sua idade fariam com esta alegria o que você faz todos os dias para
ajudar sua família? Você fica contente quando chega em casa com a sacola cheia
de comida e sua mãe sorri, não fica?
-Ah, isso eu fico sim senhora! Meus
pais prestam muita atenção em mim, minha mãe até me beija e abraça demais!
Papai quer que eu vire doutor. Eu vou para a escola de tarde. Ele me leva para
pescar no laguinho e joga bola comigo. Meu pai nunca me maltratou e quando me
bateu eu bem que mereci! A senhora... Mora no céu, não mora?
-Eu moro cá e lá. Venho muito por aqui para ver como estão os meus filhos. E como gosto de caminhar descalça, aí já viu.
O tempo parou e tudo o que alguns transeuntes avistavam quando passavam perto do poço era uma cerração antinatural, misteriosa. Uma cerração em pleno verão nordestino que se formara somente ali. Ao largo, o sol, que já estava a pino, incomodava dando muita sede e suadeira.
Na estrada de terra batida passou uma
procissão minguada e ouvia-se, além dos passos na terra batida, o som pausado
do surdo e uma voz chorosa de mulher, quase uma menina, que segurava um pequeno
caixão de anjinho recém-nascido e cantava:
Oh Virgem, oh mãe dolorosa
Mãe de Deus, mãe de Deus
Que estava sofrendo e chorando
junto à cruz
Mãe de Deus, mãe de Deus.
Oh, mãe de Deus, rogai por ele, mãe
de Deus.
Mãe de Deus, mãe de Deus.
Oh, mãe de Deus, rogai a Deus por
ele.
Chora comigo, mãe, para que eu
possa receber um pouquinho
Da tua esperança e do teu amor
Mãe de Deus, mãe de Deus
Que estava sofrendo e chorando junto
à cruz.
Mãe de Deus, mãe de Deus
Oh, mãe de Deus, rogai por ele, mãe
de Deus.
O Deus nascido de ti, mulher, veio
purificar o mundo
Oh, mãe de Deus, rogai por este
menino.
O Deus nascido da mulher veio
chamar a criatura de irmão
Mãe de Deus, mãe de Deus.
Oh, mãe de Deus, rogai por ele, mãe
de Deus.
-Inácio, você
já viu uma apresentação de dança?
-Na
televisão sempre passa. Mulheres e homens parecem que estão nus, com aquelas
roupas coladas. E requebram muito. Oh, me desculpe senhora.
-Tudo
bem, Inácio. Gosto do seu jeito de ser, assim mesmo. Mas entenda, na dança todos
se movimentam o tempo todo e nunca estão no mesmo lugar. Não é assim?
-Sim,
senhora.
-Foi
assim que o Criador quis fazer, uma dança que não tem fim. Com uma orquestra esplêndida
tocando. Mas há um reino, para além deste mundo, que só pode ser visto pela
alma que aprende a amar. Você nasceu e você vive para isto. Assim como o
pequeno. Sua jovem mãe chora, porque sonha, ela nem imagina que o filho entrou
no reino. Pobrezinha! Uma mãe sabe quando uma espada trespassa o coração de
outra mãe. Ela me chama e eu a aninho em meus braços. Muitas mães me chamam e
eu vou ao encontro de cada uma. Não se esqueça de mim, Inácio. Não se esqueça
das suas orações. A cada dia, você amará mais um pouquinho. Diga isso a todos
que você conhece. Agora preciso ir embora.
-Por
favor, fique mais um pouco. Quero gravar em minha memória e em meu coração toda
a sua formosura, minha senhora.
-Virei
ao seu encontro sempre que pensar em mim. Eu prometo.
-Eu
tenho medo! Medo de ficar só, de adoecer, de não ter arroz, nem feijão, nem rapadura
na mesa!
-Do
que você mais gosta, Inácio?
-De
tudo! De muita coisa. De fazer tudo o que quero. De ter a vida daqueles meninos
ricos da televisão... Mas sei que é pecado.
-Isso passa. Isso passa. Faça silêncio, menino! Não cisme com tudo o que sua cabeça inventa. O fogo do amor devora tudo o que não é.
Um menino que mal sabia ler naquele fim de mundo que Deus deu, viu a lua encobrir todo o sol que queimava o Sertão. Escureceu. E então uma água gigante elevou a mulher às alturas. E então ela pairou sobre um oceano vermelho que parecia pegar fogo. E então a mulher tornou-se ainda mais bela e iluminada.
-Senhora,
não me deixa aqui sozinho neste Sertão!
-Mergulhe! Onde está sua coragem? Se levante Inácio, corra até o mar e defronte a água profunda da alma!
-Minha
Senhora, tem um dragão de pé na praia do mar! Tem um dragão na praia do mar!
Tem um dragão na praia do mar!
1 Comments
Que texto maravilhoso! Lê-lo ao som da Oração, nos transporta. Obrigado por tamanha sensibilidade. Parabéns Ana!
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