Entretempo no Sertão


         
                                                                                                Aos amigos Omar e Cristina 
                                                                                                Que me inspiram a amá-la mais a cada dia.

Inácio já estava bem cansado às cinco da manhã de tanto arrancar com as mãos e a enxada raízes da macaxeira para depois lavar e vender na feira antes das sete horas do dia. Foi quando sentiu um distante aroma de rosas.

O menino de onze anos nem parecia ter chegado aos oito de tão mirrado que era. Mas tinha força, ah, isso tinha, força que vinha de algum canto de dentro, mas que não podia ser daquele corpo mal-acabado e desnutrido.

 -Inácio, largue isso aí e venha me encontrar na Vereda da Nascente.

 Inácio inexplicavelmente quase não se espantou em ouvir uma voz de mulher no meio do silêncio do Sertão, veio só a preocupação com a sobrevivência diária: o pai esperava uma cesta enorme de macaxeira na hora da feira. E pensou como se falasse para alguém:

-Oxente! Vereda da Nascente é bem umas três horas de a pé! Isto é coisa da minha cabeça, lombeira, devia ter comido a papa de sagu que vovó deixou pronta.

 Como se não fosse com ele o menino pegou o cesto já abarrotado de macaxeiras e o pendurou nas costas. Na marcha de volta para a vila deu com um jardim de flores de angico. E desta vez falou, mesmo sozinho:

 - Oxente! Valei-me, Nossa Senhora!

- Esta flor sertaneja é tão bela quanto o lírio do Oriente. Não acha Inácio? Nem Salomão jamais se vestiu como eles. Esqueça desta feira por agora e me dê um pouquinho de atenção.

 O menino correu sem pensar no meio da densa mata de arbustos secos, espinhosos facheiros, coroas-de-frade e cactos em procura desembestada da direção da voz.

  Quando chegou na Nascente e avistou o poço, olhou de relance para as canelas finas sem nenhum arranhão sequer. Já agora tremia com uma quentura no coração e um arrepio na espinha. E então a viu como se vê qualquer ente que vive, embora o vestido dela parecesse dançar naquele tempo parado, silencioso, quente e sem qualquer promessa de vento.

  -A Senhora não existe de tanta formosura que tem!

       A jovem mulher sorriu um sorriso que se abria como o sol quando vai nascendo sobre a linha do mar.

 -Fico muito feliz com o seu elogio, Inácio. Mas eu existo, de verdade.

-Nunca vi uma coroa como esta que a senhora está usando. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onde, doze! Uma dúzia de estrelas!

-Ganhei no dia que meu filho nasceu. Neste dia todo o amor que estava em mim foi para o filho que segurei nos braços. Ora, ora, mas o amor já era todo dele! E quanto mais eu o amava, mais tinha deste fogo dentro de mim, não se acabava.

-A senhora, é?

-Sim, sou eu. A Mãe.

        -Não mereço receber tanta formosura, tanta luz! Sou um menino ruim, tenho preguiça de estudar e de rezar. Será que a senhora não se enganou? Senhora, seus pés, seus pés, estão sangrando!

      -Uma coisa de cada vez, menino! Já, já estas feridas secam. Gosto de sentir tudo o que existe abaixo dos meus pés. É um hábito um pouco estranho, eu sei. Inácio, pense um pouco: você acha que os meninos da sua idade fariam com esta alegria o que você faz todos os dias para ajudar sua família? Você fica contente quando chega em casa com a sacola cheia de comida e sua mãe sorri, não fica?

        -Ah, isso eu fico sim senhora! Meus pais prestam muita atenção em mim, minha mãe até me beija e abraça demais! Papai quer que eu vire doutor. Eu vou para a escola de tarde. Ele me leva para pescar no laguinho e joga bola comigo. Meu pai nunca me maltratou e quando me bateu eu bem que mereci! A senhora... Mora no céu, não mora?

         -Eu moro cá e lá. Venho muito por aqui para ver como estão os meus filhos. E como gosto de caminhar descalça, aí já viu.

        O tempo parou e tudo o que alguns transeuntes avistavam quando passavam perto do poço era uma cerração antinatural, misteriosa. Uma cerração em pleno verão nordestino que se formara somente ali. Ao largo, o sol, que já estava a pino, incomodava dando muita sede e suadeira.

        Na estrada de terra batida passou uma procissão minguada e ouvia-se, além dos passos na terra batida, o som pausado do surdo e uma voz chorosa de mulher, quase uma menina, que segurava um pequeno caixão de anjinho recém-nascido e cantava:

 

Oh Virgem, oh mãe dolorosa

Mãe de Deus, mãe de Deus

Que estava sofrendo e chorando junto à cruz

Mãe de Deus, mãe de Deus.


Oh, mãe de Deus, rogai por ele, mãe de Deus.

Mãe de Deus, mãe de Deus.

Oh, mãe de Deus, rogai a Deus por ele.


Chora comigo, mãe, para que eu possa receber um pouquinho

Da tua esperança e do teu amor

Mãe de Deus, mãe de Deus

Que estava sofrendo e chorando junto à cruz.


Mãe de Deus, mãe de Deus

Oh, mãe de Deus, rogai por ele, mãe de Deus.

O Deus nascido de ti, mulher, veio purificar o mundo

Oh, mãe de Deus, rogai por este menino.


O Deus nascido da mulher veio chamar a criatura de irmão

Mãe de Deus, mãe de Deus.

Oh, mãe de Deus, rogai por ele, mãe de Deus.


         Por trás da bruma, Inácio não estava conformado com a morte do pequeno conhecido da família, que não resistira à uma doença grave.

 -Morreu, minha Senhora. Deus não quis que o bichinho vingasse?

-Inácio, você já viu uma apresentação de dança?

-Na televisão sempre passa. Mulheres e homens parecem que estão nus, com aquelas roupas coladas. E requebram muito. Oh, me desculpe senhora.

-Tudo bem, Inácio. Gosto do seu jeito de ser, assim mesmo. Mas entenda, na dança todos se movimentam o tempo todo e nunca estão no mesmo lugar. Não é assim?

-Sim, senhora.

-Foi assim que o Criador quis fazer, uma dança que não tem fim. Com uma orquestra esplêndida tocando. Mas há um reino, para além deste mundo, que só pode ser visto pela alma que aprende a amar. Você nasceu e você vive para isto. Assim como o pequeno. Sua jovem mãe chora, porque sonha, ela nem imagina que o filho entrou no reino. Pobrezinha! Uma mãe sabe quando uma espada trespassa o coração de outra mãe. Ela me chama e eu a aninho em meus braços. Muitas mães me chamam e eu vou ao encontro de cada uma. Não se esqueça de mim, Inácio. Não se esqueça das suas orações. A cada dia, você amará mais um pouquinho. Diga isso a todos que você conhece. Agora preciso ir embora.

-Por favor, fique mais um pouco. Quero gravar em minha memória e em meu coração toda a sua formosura, minha senhora.

-Virei ao seu encontro sempre que pensar em mim. Eu prometo.

-Eu tenho medo! Medo de ficar só, de adoecer, de não ter arroz, nem feijão, nem rapadura na mesa!

-Do que você mais gosta, Inácio?

-De tudo! De muita coisa. De fazer tudo o que quero. De ter a vida daqueles meninos ricos da televisão... Mas sei que é pecado.

-Isso passa. Isso passa. Faça silêncio, menino! Não cisme com tudo o que sua cabeça inventa. O fogo do amor devora tudo o que não é.

Um menino que mal sabia ler naquele fim de mundo que Deus deu, viu a lua encobrir todo o sol que queimava o Sertão. Escureceu. E então uma água gigante elevou a mulher às alturas. E então ela pairou sobre um oceano vermelho que parecia pegar fogo. E então a mulher tornou-se ainda mais bela e iluminada.

-Senhora, não me deixa aqui sozinho neste Sertão!

-Mergulhe! Onde está sua coragem? Se levante Inácio, corra até o mar e defronte a água profunda da alma!

-Minha Senhora, tem um dragão de pé na praia do mar! Tem um dragão na praia do mar! Tem um dragão na praia do mar!

 Silêncio. Um vento terral esquentava mais do que refrescava. Inácio delirava estirado no chão. Quando sentiu na cabeça os raios implacáveis do sol a pino, foi despertando do desmaio. Reparou que um burro estava sentado ao seu lado, comendo o capim seco daquele chão. O animal lambeu o pé do menino que sentiu cócegas e sorriu. O burrinho, velho e cansado, carregava um embornal com comida boa e água gelada, além de uma alpercata de rabicho do tamanho justinho do pé de Inácio e um rosário de contas peroladas. Sem qualquer sinal de espanto, o menino fez o sinal da cruz e não tirou mais os olhos da direção do céu.

 

 


1 Comments

  1. Que texto maravilhoso! Lê-lo ao som da Oração, nos transporta. Obrigado por tamanha sensibilidade. Parabéns Ana!

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