RAPSÓDIA: Indicada para profundos e profundas abissais.

RAPSÓDIA

Indicada para profundos e profundas abissais

 

 

 

PEÇA TEATRAL EM 5 DANÇAS E UM 

EPÍLOGO

 

 Dedico a uma alma que me inspirou e que me inspirará para sempre, além do tempo e do espaço.

 

1ª Dança


1.

Helena: Eu vi. Ninguém me contou não. Eu vi a tua queda do penhasco. Cravava as unhas no solo, mas a gravidade foi mais forte. E veio parar aqui, na minha frente.

Antônio: Não caí coisa nenhuma. Você que subiu até aqui para me encontrar no campanário.

Irene, a autora: Helena sorriu com doçura, como se ele fosse uma criança mimada. Uma criança mimada e adorada.

Helena: Perfeitamente. Você não se jogou, ainda está lá em cima, gritando e sendo muito feliz na sua intransponível fortaleza, onde você se refastela regendo e tocando todos os instrumentos. Isso tem um sabor, não tem? É como se fosse só você e Deus e não tem o outro, o conflito, o medo, a ruptura. Mas pensando bem eu diria, só para te provocar, que Deus não mora lá... Ou mora? Pode me responder se Deus mora lá? E então você pode me mostrar o caminho? É porque eu sinto a náusea e não consigo, por mais que reze e chore e grite, a náusea não me larga. A lucidez está colada na minha pele. Mas você também não me venha com essa história de que se livrou desta realidade e encontrou com Ele. Seja sincero comigo, só uma vezinha, por favor me diga: Ele aparece no seu abrigo secreto?

Irene, a autora: E ele foi falando sem pensar, porque estava cansado, muito cansado.

Antônio: Não. Lá também, na minha solidão e alheamento, não estou com Ele...

Helena: Por favor me diga meu amor, então onde Ele está? Existe um lugar onde Ele mora? Você foge de mim para encontrá-lo, mas também não o encontra, não é verdade?

Antônio: ... E de vez em quando eu preciso cair aqui embaixo e te encontrar, porque me dá muita saudade! Mas eu não tenho a tua força, eu não aguento a náusea como você aguenta.

Helena: Não estou sentindo a náusea agora, você está aqui. Mas sei que está prestes a atirar todos aqueles pratos e copos em cima de mim novamente. Isso é alguma superstição que eu não conheço? E então eu fujo como os animais que são atacados. Acho que estou condicionada a esperar de ti o ataque. Os músculos do teu coração ficam duros, gélidos! Claro que isto eu não enxergo, só vejo os olhos opacos, como aquele sal nas janelas dos navios. É uma pena porque eu gostava imensamente de não sentir a náusea.

Irene, a autora: E ela foi mesmo embora. Desapareceu no meio de uma bruma estranhamente artificial, num tom magenta de desenho animado. Será que um dia voltaria? Não foi por orgulho ferido ou essas bobices de amor próprio, dignidade e coisa e tal, ela se foi por puro instinto de sobrevivência. Ora, uma coisa destruída e cortada por estilhaços de vidro não serviria para mais nada. Nem mesmo para o perdão. E ele chorou, chorou, chorou e chorou. Fechem os olhos, os que me leem agora. Só sintam o silêncio das lágrimas do herói, parem de ler o que está escrito. Não importam mais as minhas palavras. Suas lágrimas não paravam mais e ele estava preso ali. Ela não estava mais lá. Ele estava preso no claustro e se afogando em lágrimas porque ela não estava mais lá. Mas por favor não leiam, parem de ler, escutem como as lágrimas se misturam com a vida, como as lágrimas se transformam no silêncio consagrado. Muitos dias se passaram e a água parou de escoar de dentro dele, que despertou, já batizado por aquelas lágrimas salgadas. Quanto a mim, a autora, que escrevo para não acabar, pelas horas do tempo que conta, não teria como confirmar agora o que aconteceu com o destino daquele que criei em meu coração porque a vida é dele, não é minha.

Estou somente pintando paisagens que vêm e vão e independem de mim.

Claro que me encanto pelos elementos, pela água que escorre, pela luz do sol e o verde, entretanto, a paisagem que mais amo, que gera música em meu coração, é aquela paisagem que se move no espaço, que ri, chora, se aproxima, corre, volta, abraça, fica e quando abre os olhos me surpreende com mais um mistério que preciso decifrar. O mistério de outra pessoa... Às vezes pode não parecer, mas não preciso e não quero um espelho. Quero amar todos os dias aquele desconhecido que se move e faz todas aquelas coisas diferentes de mim.

2.

Coro de velhos sábios: Ei, você que escreve esta história aí! Sua linguagem não é clara. Nós estamos aqui deliberando e ainda não conseguimos concluir se falas de vida ou de morte, de alegria ou de danação. O que quis dizer com: "escrevo para não acabar?"

Irene, a autora: Para começo de conversa eu não colocaria um coro grego numa história. Por que vocês não vão interferir na vida de reis que dormiram com suas mães, mataram seus pais, depois furaram os olhos e foram viver no campo? Ora, façam-me o favor, se metam na vida de Édipos, Antígonas, Ifigênias, Clitemnestras, Agamenons, Menelaus, Páris, Helenas! Helena... Ai minha cabeça! Escutem, meus senhores, eu não escrevo sobre terríveis maldições de reis e rainhas que não davam um passo sem consultar os oráculos! Eu sou uma sacerdotisa do povo! O que faço é muito simples, manipulo arquétipos por alguns trocados que as editoras me dão, mas principalmente para ganhar alguns segundos de silêncio dentro das 24 horas de motores e turbinas na minha cabeça! Acabar não é a morte, é viver dentro da máquina, então quando escrevo desfruto de alguns segundos fora da máquina, e consigo até mesmo planar por cima como um astronauta no silêncio do vácuo. Eu me entretenho vendo o azul arredondado lá de cima, passo por Antares e sua luz mais dourada que o sol, passo pela lua, mas não exploro os seus domínios. Vou descendo no caminho de volta, me aproximando da camada de ar da superfície azul e caio muito rápido com a gravidade, sinto os respingos do oceano, como é imenso e pode me devorar em segundos! Não! Não me devora, porque sei que faço parte da imensidão. Também que me importa doar meu corpo, minha consciência, para o extraordinário vácuo! O que não quero mais é esta prisão e seus instrumentos de tortura. Ora, dizem os soldados da infantaria, mas você vive muito bem, não lhe faltam casa nem comida. Se do outro lado do mundo ou na sua esquina torturam, matam, esfolam, estupram, devoram as mentes dos fracos e oprimidos, isto não é com você. Do alto da sua torre é só pedir comida, eletrodomésticos, lingerie, chicotes, pequenos mamíferos que lhe fazem companhia, drogas e amor com conservantes e de caixinha pelo aplicativo do celular.

Corifeu: (se aproxima) Você está morrendo de medo. Nós somos os velhos sábios e sabemos que você também tem a náusea. Não é a sua personagem que tem, é você!

Irene, a autora: Ela morava na Avenida Norte 3930 com sua avó. Numa casa mal assombrada. Ouvia vozes repetindo uma cantilena no 2º andar. Estavam velando o menino. Mas ele começou a se mexer. Era um menino muito pequeno, um bebê, que começou a se mexer, mesmo estando morto! Olhou para os seus olhos, se levantou como um monstro e começou a persegui-la pela escada em caracol que nunca se acabava. Estranhamente não a alcançava. Mas a menina estava morrendo aos poucos, de exaustão, como se fosse um Prometeu Acorrentado que não era devorado de vez, mas que estava ali servindo o seu fígado para a águia, dia e noite, noite e dia. Foi um sonho, o sonho mais real que tive. Às vezes quero morrer, para não sentir mais a dor da náusea.

Corifeu: E jogar todo o trabalho fora?

Irene, a autora: Por outro lado, senhor Corifeu, viver é uma excitante contenda. Eu confesso que o meu espírito de combate tem enorme admiração pela vida, mesmo neste lamaçal. Mas o meu corpo pesa e tem toda essa gravidade, que é uma lei daqui. Olho para os meus dedos e vejo que são longos e finos... Gosto das minhas mãos finas e longas, mas ainda assim elas não podem passar pela fenda estreita que as separa da testa dele, de suas têmporas, de seus olhos, de sua boca... (Mudando abruptamente de assunto) Senhor Corifeu, como faço para ter a coragem dos Argonautas e a fé daquela feiticeira apaixonada? Era fé, sobretudo no amor, mesmo que não houvesse um pingo de moral...Tudo o que mais quero é acreditar em Deus a ponto de singrar o mar mais tenebroso que existe, deixar a alma ir à frente do corpo, sem me importar, naquela fé cega de que terei em minhas mãos o Velocino de Ouro.

Corifeu: (Tossindo, um pouco constrangido) Você sabe que não existe um só Deus no nosso mundo. Somos politeístas.

Irene, a autora: Isto é conversa. Há um só Criador. E tudo o que Ele faz é perfeito e traz a alegria para o seu povo. Nós inventamos os outros deuses para tentar viver no fragmento e na lama que inventamos, ao som daquela sirene infinita que nos aparta do verbo criador. Ele gosta de andar descalço no meio do seu povo, como um trovador, proferindo e cantando os versos.

Corifeu: Você está falando do Livro Eterno, da Palavra. Isso é estória de judeu!

Irene, a autora: Veja bem, isso não é estória de judeu, eu posso explicar. A Palavra vai criando sem parar, na sua, na minha alma. A palavra jamais fica pronta para ser embrulhada na caixa. Ela fervilha como os peixes na água... (Aparte, para o público) Xiii... Não contem para ninguém que não existe o descanso eterno...

Corifeu: Não quero saber de palavra nenhuma que fervilha como os peixes na água... Auto lá! Eu não sou judeu, pertenço ao antigo mundo clássico com muito orgulho!

Irene, a autora: Posso continuar? O senhor está se apegando a frivolidades. Havia uma música em tudo, um diálogo harmonioso, mas de repente eu fui parar no mundo, chorando, me apararam com aquelas mãos geladas. Naquele tempo eu não era um vidro quebrado, estava inteira...

Corifeu: Há uma beleza nisto aí que a senhorita diz. Uma harmonia com tudo o que existe, um estado de presença e consciência de ser que independe do mundo. Zeus fala um pouco sobre isso quando está de bom humor e sem vontade de fazer filhos.

Irene, a autora: (sorrindo): O amor, a alegria, a união das almas são como uma onda que derruba todas as taxonomizações... É como aquele Poco Allegretto de Brahms.

Corifeu: Brahms? Não é do meu tempo.

Irene, a autora: Nem do meu.

3.

Irene, a autora: Muito bem, o senhor não me ajudou muito, mas foi bom conversar. Aliás, de onde o senhor surgiu? Ah, esquece, isso não tem nenhuma importância. Só preciso continuar procurando Helena.

Corifeu: Você sabe como encontrá-la. Helena é obra sua.

Irene, a autora: Você tem razão. Me desculpe... O SENHOR tem razão... Como este lugar é bonito! E faz um silêncio realmente notável. Onde nós estamos?

Corifeu: Ora, nós estamos no salão do rei.

Irene, a autora: E onde ele está?

Corifeu: Quem?

Irene, a autora: O rei.

Corifeu: Viajando, ora. Mas pode chegar a qualquer momento. O rei nunca avisa quando chega.

Irene, a autora: Não vem que não tem! Isto tudo é uma convenção do teatro. Não é o mundo real, é uma visão ideal da realidade. Estamos num universo estético. Helena está perdida no mundo real, porra! Por favor, me desculpe o palavrão.

Corifeu: Desculpada. Mas não foi você mesmo quem criou Helena? Quer dizer, a SENHORA... Como pode ter se esquecido de seu paradeiro?

Irene, a autora: Eu só queria que Helena espairecesse, saísse um pouco do universo ideal, da palavra. Eu fiz de tudo para que Helena encarnasse e fosse livre e tocasse a beleza, essas coisas...

Corifeu: A senhora sabe que o amor pode ser criado no mundo real, não sabe?

Irene, a autora: Eu já acreditei...

Corifeu: Venha comigo.

Irene, a autora: Para onde?

Corifeu: Confie em mim

4.

Corifeu: Veja bem. Estamos no teatro, isto tudo é uma convenção, vemos o próprio teatro e também as fachadas dos templos e palácios. Veja como todos aqueles olhos nos observam da arquibancada! Nas tragédias, você sabe, só se interessam pelas desgraças da nobreza, por coisas como a Maldição dos Labdácidas.

Irene, a autora: A visão aqui é pujante, tem uma escala extraordinária. O que é aquilo?

Corifeu: Era o que eu queria lhe mostrar. Aquilo lá é o grande memento da beleza. Para que ela não se dissipe do mundo. A deusa Afrodite emergindo dos alçapões do teatro. São os nossos deuses ex. machina. Eles surgem do nada e resolvem tudo em três tempos porque o teatro é coisa séria, aqueles olhos que nos observam esperam que quem está aqui saiba o que está fazendo, porque depois fica bem mais difícil fazer coisas como ressuscitar todas as pobres virgens sacrificadas e tal... Toda a alquimia é feita aqui nos domínios do teatro.

Afrodite: (Se aproxima) Estava esperando por você.

Irene, a autora: Quem é esta senhora?

Afrodite: Deusa Afrodite, muito prazer.

Irene, a autora: Afrodite... A encarnação da beleza... Que perfume extraordinário! Quanta luz! Nunca tive acesso assim a tanta beleza. Uma beleza que brilha como a lua cheia no oceano. De onde vem tudo isso que meus olhos jamais viram?

Afrodite: A beleza? Ora, vem do amor que sinto. Ninguém aqui neste lugar jamais me proibiu de amar. Eu nasci para ser pura beleza e puro amor e não escondi nada, tirei todos os véus e eles me viram inteirinha. Mas não se esqueça de que eu estava te esperando. Eu quero saber o porquê destes olhos estarem assim tão apagados.

Irene, a autora: Não é nada. Eu só preciso voltar agora para o mundo. Procuro por Helena, minha criança. Eu realmente gostaria de ficar, sei que é uma desfeita, mas...acredite... embora a beleza da senhora me atraia, eu não quero mais, eu desisti da beleza. Me desculpe, não leve a mal.

Afrodite: Quanta bobagem que você diz. Uma bobagem em cima da outra. Isto é muito grave! Pare! Helena precisa de você, da sua regência, dos seus dedos criadores, da sua afeição.

Irene, a autora: Eu saí falando para ela tudo o que sentia, eu não pensei. E então ela se perdeu, porque saiu por aí faminta de amor. Helena é uma mulher apaixonada que quer se doar para continuar vivendo.

Afrodite: Vem comigo. (A deusa Afrodite leva a autora até um lindo jardim. Entra uma ninfa seminua com um cálice nas mãos. A menina sorri, um pouco desajeitada, segurando a bandeja.)

Afrodite: Pode ir mocinha, isto aqui é conversa de adultos!

Irene, a autora: Ela está quase nua e é só uma menina. No mundo real uma menina como esta seria cobiçada e violada por lobos.

Afrodite: Por Zeus! Beba logo! Pode-se ver que você anda colada à uma sombra. Mas passa. Beba todo o conteúdo do cálice. Feche os olhos. Não tenha medo. (Ouve-se um adágio pungente. )

Afrodite: Eu sei que você gosta muito de música, então eu trouxe para ti a minha orquestra. Respire lentamente.

Irene, a autora (Entrando num estado de torpor) O que tem neste licor? É um doce na medida certa, sente-se o gosto do cheiro. Tudo que existe está aqui, é salgado e também tem gosto de peixe, de beijos, gosto de suor. Mas como pode ser tão bom?

Afrodite: Silêncio. Quietinha agora. Tente se lembrar... Do que Helena mais gostava?

Irene, a autora: Helena gostava de música e de se molhar na água gelada. Helena sabia quando a alegria não era de verdade. Ela me mostrava isso desde muito pequena.

Afrodite: Como assim?

Irene, a autora: Ela sabia quando estavam todos fora de si, gritando e gargalhando nas pistas de dança, nos coquetéis, nas vernissages, inaugurações, naqueles carnavais... Ela começava a se nausear porque aqueles perfumes lhe davam dor de cabeça e também...

Afrodite: E também?

Irene, a autora: Porque ela sentia logo, entre os aromas do salão, aquele cheiro de carne em decomposição...

Afrodite: Pobre criança... Por que assim tão frágil?

Irene, a autora: Porque eu queria que ela fosse de verdade. Por isto a fiz para o mundo. A senhora é uma deusa, mas deve saber que na realidade mortal não se sobrevive muito tempo como coisa inteira. E mesmo assim eu precisava que ela fosse de verdade. O que havia naquele cálice?

Afrodite: O melhor licor que temos na casa. Não é bom?

Irene, a autora: Minha mente está entorpecida. A senhora quis me dopar?

Afrodite: Você não queria encontrar Helena? Isto vai te ajudar.

Irene, a autora: Pois sim! Como uma droga servida por uma bacante nua nos aposentos de uma deusa mitológica pode me ajudar? O que pode acontecer é que eu vá parar num hospício!

Afrodite: Os hospícios estão cheios de lúcidos.

Irene, a autora: Onde estou?

Afrodite: E importa?

Irene, a autora: Quero saber! Quero saber!

Afrodite: Neste momento? Voltando para você.

Irene, a autora: E Helena?

Afrodite: Calma! Uma coisa de cada vez, primeiro você, depois Helena.

Irene, a autora: Espere! Me lembrei de uma coisa. Quando Helena fugiu naquela noite de chuva ela deixou seu relógio dourado sobre o criado mudo com um bilhete. Vou ler para você:

" Mamãe, a aventura me chama. Este relógio dourado é o meu preferido. Sei que parece falta de educação devolver um presente tão lindo assim, mas a senhora precisa saber que jamais contei o tempo dos relógios, me dava dor de cabeça. E agora, mamãe, agora que estou apaixonada, que amo tanto assim a outra criatura tão diferente de mim, não posso levar o relógio comigo porque não quero ceder à tentação de começar a contar as horas e estragar tudo. Te amo, mamãe. Para sempre sua, Helena."

Afrodite: Quem era ele?

Irene, a autora: Não consigo me lembrar de nada sobre ele. Nem o nome.

Afrodite: Você sabe, sim. Lembre-se de que ele também é criação sua.

Irene, a autora: Eu não o criei. Ele é um intruso! Apareceu para desgraçar a vida dela! (Num transe) No meio da madrugada ele abria uma janela e observava o meu sonho. É sempre assim, ele acorda e me chama. E então ele vem e entramos na água. Na água não tem gravidade, que é uma lei daqui. (Seus sentidos vão se desligando e ela desmaia.)


2ª dança

 

1.Encontro não marcado



Irene, a autora: Este lugar é sujo e frio! Definitivamente aqui não é o paraíso. Será que estou morta e fui parar no inferno? Não, eu não conheço este lugar e jamais vivi aqui. Que loucura, estou falando sozinha de novo. Que palhaçada! Quem está aí? (Ela percebe uma pessoa dentro de uma vala destampada. Num ímpeto, se aproxima e vê um rosto infantil, enrolado em uma espécie de saco. Parece uma menina. Tudo ao redor da criança tem o odor de fezes e urina. A criança está segurando um palito de fósforos aceso e parece delirar)

Sulamita: Mamãe, que bom que você chegou! Os seus olhos estão brilhando, mamãe! (A menina olha para as próprias mãos imundas e deixa o fósforo cair e apagar) Veja, eu estou usando as luvas azuis da princesa. Mamãe, onde está o papai? Ele também conseguiu passar pela cerca? Aqueles homens não eram muito espertos, ficavam rindo alto, fumando cigarros... Bateram no papai e disseram que era uma "pessoa infame." O que é isso, mamãe? Uma pessoa infame? Sei que é uma coisa ruim. O papai não é isso de jeito nenhum!

Irene, a autora: Olha, menina, infelizmente eu não sou sua mãe. Como é seu nome? Olha, tem muita comida aqui na minha bolsa. Posso dividir com você.

Sulamita: Você não é minha mãe? (A menina esfrega os olhos e suja ainda mais o rosto de fuligem e lama)

Irene, a autora: Não. Eu não sou sua mãe. Você precisa de água, está delirando de tanta febre. (Tira da bolsa uma garrafinha d' água que a menina bebe sofregamente) Eu não vou te machucar, menininha.

Sulamita: Eu não sei se tenho mais vontade de comer. Minha barriga dói. Como é seu nome, moça?

Irene, a autora: Eu...Eu acho que... Não me lembro. Minha cabeça está confusa. Estou procurando alguém... A minha filha. Estou procurando a minha filha, Helena. Acho que sofri um acidente, que perdi minha memória. Me deram alguma coisa para beber e eu não lembro de mais nada. Sei que escrevo estórias. As pessoas leem o que eu escrevo. E também vão assistir no teatro e no cinema.

Sulamita: Eu me lembro do meu nome. Me chamo Sulamita, mas a minha boneca por enquanto só se chama boneca mesmo. Fiquei com medo de colocar um nome e ela começar a sentir também. E depois, se ela tivesse um nome e deixasse de ser boneca para se tornar uma menina, iriam descobrir que ela estava chorando. E no campo do silêncio, ninguém pode chorar, não pode nem respirar. Então a senhora é famosa?

Irene, autora: É... Isso aí, eu sou muito famosa! (As duas esboçam um pequeno sorriso, uma para a outra) O que é essa coisa aí?

Sulamita: É uma... zurna! Acho que é esse o nome. De vez em quando eu toco para a minha boneca. Eu ganhei de um moço estrangeiro lá no campo do silêncio. Toco para minha boneca e ela gosta, ela para de chorar quando eu toco, e dorme. Quando eu a embalo com música, eu também me embalo, mas é bom ter outra pessoa para nos embalar e tocar nossos pés. Não é bom sentir as mãos de alguém em nosso corpo? Mamãe brincava com seus dedos na minha cabeça, como se tivesse catando piolho.

Irene, a autora: Precisamos sair daqui. É muito perigoso.

Sulamita: Não posso sair agora, minha mãe ainda pode aparecer, não faz tanto tempo assim que ela disse que ia procurar ajuda. Ela disse que eu era uma menina crescida e forte e que conseguiria sobreviver para crescer e me tornar uma linda moça que um dia também teria um filhinho. E que eu não morreria antes de ter o meu filhinho e uma casa bem confortável e muita comida na mesa.

Irene, a autora: Esses cabelos tão finos que você tem, menininha. Está tão fraquinha... Consegue andar?

Sulamita: Eu e minha boneca não estamos com tanta fome assim, acho que... (começa a contar nos dedos) há uns cinco dias nós comemos um sanduíche com tomate, queijo e uma carne esquisita. Estava inteirinho ali no lixo. Também tinha suco, um suco amargo, mas deu para passar a sede da gente.

Irene, a autora: Você precisa comer. Toma aqui, uma maçã e um sanduíche muito bom. Coma.

Sulamita: (A menina avança no primeiro pedaço, nem ela mesmo se lembrava que estava com tanta fome) Está bom! Tudo uma delícia! Mas como é possível você não ter um nome, moça? Alguém usando uma tiara tão linda de pedras preciosas como você usa precisa de um nome. Posso te dar um?

Irene, a autora: Sim. Acho que um nome vai ser bom, menininha.

Sulamita: Deixa-me pensar... Nome, nome, nome de princesa... Elsa! Não... Bela! Sem graça, Aurora... acho que não... tem cara de Aurora não... Tem esses olhos tão escuros e brilhantes... Ah, já sei: Esmeralda!

Irene, a autora: Gostei muito, Sulamita. Obrigada por me dar um nome. E você tem muito bom gosto. Esmeralda é uma pedra preciosa, de cor verde, e é também um lindo nome de pessoa. Olha, você vai precisar ser muito esperta, sei que é uma criança, mas nós estamos sozinhas e temos que nos virar. Eu não sei o que aconteceu comigo, mas sei que vou recuperar a minha memória. Você conhece este lugar?

Sulamita: Ei, Esmeralda! Vamos voltar para o buraco! (Sulamita puxa Irene novamente para a vala dentro do beco, quando avista que está se aproximando uma ronda de três homens fardados.)

Irene, a autora: O que foi isso? Eu não vi nada!

Sulamita: Shiii! Faça silêncio. Eles passam toda a noite, por isso eu não saio mais do buraco. Usam a mesma roupa, com o mesmo emblema. Minha mãe mandou eu prestar muita atenção. Ela me ensinou tudo, lá no campo do silêncio. Quando o frio chegou, tudo ficou deserto, então não tinha mais nada para comer daquilo que fomos pegando e colocando dentro da bolsa. Achei melhor proteger a minha filhinha e não sair mais do buraco.

Irene, a autora: O campo do silêncio...

 

 

2.

Sulamita: Esmeralda, você tem certeza de que sua filha mora aqui, nesta cidade?

Irene, a autora: Não sei, não consigo me lembrar. Eu me lembro que Helena me enviou o retrato de uma cidade grande e suja como esta. Tinha uma catedral com gárgulas assustadoras, lá no alto. (Cai num pranto) Eu só preciso saber se ela está bem, se ela fez o que precisava ser feito, se ela tem mesmo forças para viver aqui, neste lugar. Como você consegue, menininha?

Sulamita: Eu já sou bem crescida, sei me virar. Por favor, quero que me chame pelo meu nome. Eu não sou menininha, eu já sofri o suficiente para não me perder mais em distrações, como uma menininha boba faz.

Irene, a autora: Eu sei, Sulamita. Mas por favor, eu também te peço, deixa eu cuidar um pouco deste fio de menininha que existe em ti, tão delicado como asa de borboleta. Não fique rígida, não fique amarga. Não se pode arrancar assim a meninice de uma criança, infligindo uma dor que ela não pode suportar.

Sulamita: Eu gosto quando você fala e olha diretamente para mim, no fundo dos meus olhos, depois sorri.

Irene, a autora: É porque eu já quero o seu bem, porque você é tão forte e viva, parece um anjo que estava voando e de repente bateu com as asas numa torre muito alta. Agora está desorientado e não sabe como voltar para o céu.

Sulamita: Esta é Helena? No retrato? Ela se parece tanto com você!

Irene, a autora: Sim, muito parecida. Olhe para a cidade: o velho metrô, a catedral, pessoas indo e vindo. Só pode ser ela que eu vejo em meus sonhos. Sei que ela percorre este caminho do retrato todos os dias. Está vendo aqui? (Imagens aparecem na cabeça da autora)

Helena se move pela rua estreita, a rua da Natividade, aquela onde tem as flores e a Igreja dos Ossos, corta pela rua do mercado e segue em direção à baía, passando pelos bares animados, que ficam abertos até a madrugada. Via sempre aquele mesmo homem pálido, esquálido, parecia que a vida dele estava naquele instrumento.

Sulamita: Você conhecia aquele homem? Que instrumento ele tocava?

Irene, a autora: Helena me falou, mas não me lembro. Ela dizia que era como se o instrumento não importasse, pois ele tinha se transformado na própria música. Uma verdadeira simbiose...

Sulamita: Simbiose?

Irene, a autora: Um vínculo muito forte entre ele e a música. Uma pena que não era em nome da alegria, era em nome da tristeza que ele tocava, menininha. Os olhos completamente embaciados, mas tinha uma réstia de vida nos dedos vibrantes que geravam o som. Tocava sempre a mesma música, mas cada dia parecia ser uma música diferente...

Dobra no tempo: 20 anos atrás

 

Helena: Eu estava pensando nele, somente nele, o tempo todo, e só me distraía quando passava pelo homem da esquina da rua da Natividade, que tocava todo dia a mesma música. Tinha pena, muita pena. Mesmo apressada para não perder o barco, sempre voltava e dava uma moeda, porque a música era sempre outra e era mesmo uma arte transformar uma mesma música em diversas outras músicas, todos os dias. Talvez fosse só um delírio meu, um delírio de adolescente que cria histórias em sua cabeça e aquele homem de olhos sombrios fosse feliz a seu modo e dormisse tranquilamente todos os dias. Logo me esquecia do músico e voltava a arder em febre, a sentir aquele fogo em meu coração. Passava frenética e desabrida pelos últimos obstáculos. Ele nunca chegava depois. Sempre que eu pisava em terra firme, ele estava lá me esperando e logo que o via, sentia um medo de morte daquela experiência absolutamente perturbadora porque fazia o meu corpo e o meu espírito se revirarem e remexerem toda a terra que estava quieta.

Antônio: Helena!

Helena: E eu não conseguia parar de sorrir, um sorriso que vinha de um lugar muito profundo em mim, tanta alegria! Mais uma vez eu estava chegando em casa. Sua substância, tudo o que era ele vibrava em mim. Eu entendia porque tinha sido criada, porque estava aqui... Antônio!

Antônio: Como é bonita! E descarada demais!

Helena: Por que?

Antônio: Porque sabe que eu gosto de ver as suas pernas, do joelho para baixo.

Helena: Do joelho para baixo eu sei que seu olhar ficará satisfeito, mas ainda guardará dentro da alma um mistério, uma incerteza. Tem razão, eu sou mesmo uma descarada. Antônio, quero me casar contigo ali na igreja das gárgulas! Antônio, eu gosto da arquitetura das igrejas! Antônio, eu sou indiscutivelmente uma alma barroca! Antônio, eu sou declaradamente uma alma inquieta! Antônio, Antônio, Antônio, eu adoro repetir o teu nome! Eu amo a palavra e o som, só para poder amar o silêncio que fica mariolando ali no meio.

Antônio: Já entendi que você sabe muito bem o meu nome e, meu Deus, quer se casar! E na igreja barroca das gárgulas!

Helena: Não temos pressa, temos tanto, tanto tempo! Ainda somos só duas crianças. Um dia vamos ter uma família e vamos cuidar de todos. Teremos sempre a nossa casa com varanda, bem perto do mar, com a brisa, o cheiro e o som do mar. É lá que todos se achegarão, porque ali terá calor, água, alimento. Eu, obviamente, serei o esteio da nossa família, porque acumularei as funções de super mãe e super mulher, com as de renomada jurista. E você será o renomado neurocirurgião da cidade, que nunca para em casa, que nunca tem tempo, mal tem tempo para cumprir os deveres conjugais com sua esposa adorada!

Antônio: Meu Deus, como você fala, mulher!

Helena: Verdade. Falo por mim e por ti. Antônio, o teu braço é tão lindo, meu amor!

Antônio: Helena, a tua boca é tão linda, meu amor!



3ª dança

Da plateia, o Corifeu e Afrodite assistem à cena.


Afrodite: Eu preciso que os senhores venham até o proscênio. Falem bem perto de mim, olhem nos meus olhos. Corifeu, junte-se a eles. Por favor, me digam, o que os senhores veem?

Corifeu: Está claro que é amor, que é uma força, que não tem outro poder.

Afrodite: O senhor é um romântico. Junte-se aos velhos, pelo semblante deles vejo que enxergaram mais alguma coisa que estava incógnita naquele encontro.

Corifeu: Olha de novo, mulher! Os dois se beijam, apaixonadamente, como fazem os namorados, impelidos pelo amor de Deus! Porque Deus adora fazer coisas como brilhar no firmamento como as estrelas e o sol, gosta de ser escarcéu crispado se jogando na colina da costa, outras vezes fica serenando entre as reentrâncias dos fiordes... Deus também é simples, frugal, sendo um bichinho diminuto, bicho que fervilha na água, bicho que voa, bicho que rasteja, bicho que caminha. E Deus se refastela fazendo amor, como o homem, como a mulher, forjando sem pressa naquela sua caldeira, a magnífica possibilidade.

Afrodite: O senhor andou conversando demais com aquela intrusa. Está tudo muito certo, está tudo muito bonito, mas é preciso colocar a luz em cima. Por favor, acendam todos os refletores, luz branca, natural, não quero efeito, não quero bruma e tirem aquela iluminação gloriosa.

Corifeu: Não! Aquela iluminação gloriosa é a que eu mais gosto!

Afrodite: Eu sei, meu amigo, mas vamos colocar os pratos na mesa, sem panos quentes. Agora me digam, existe ou não existe uma sombra?

Coro de velhos sábios: Afrodite, rainha da beleza e da graça, a senhora entende de amor e magnetismo como poucos, mas os mortais são frouxos e inconscientes. Eles não dão conta da felicidade, eles não dão conta de perderem o controle. A senhora veja, que duas criaturas tão lindas assim tão apegados à carne. O que é belo e vivo não tem medo da morte ou da doença. Medo de um lado, medo do outro. Imediatamente começam os conflitos. O amor e a felicidade nunca são suficientes para eles. É preciso ter razão! De rei e rainha, se transformam em mendigos, debatendo-se em desespero por pedaços podres de razão e de poder.

Afrodite: Ei, menina, larga esse cacho de uva e essa garrafa de vinho! Chame ela aqui. Agora!


A ninfa entra no palco segurando Irene, a autora, pela mão.


Ninfa: Senhora, acho que ela está meio doidona.

Afrodite: Joga ela dentro da piscina.

Ninfa: Eu?

Afrodite: Deixa que eu faço isso. (Joga Irene dentro de uma piscina muito gelada)

Irene, a autora: Me tira dessa água gelada!



Afrodite: Já dormiu demais, agora é hora de olhar para a realidade. Para de choramingar. Senta aqui comigo na plateia. Agora vamos observar a sua obra.

Irene, a autora: Eu não quero ver! (Afrodite toca com força na testa de Irene, como se a acordasse de uma sessão de hipnose) Olhe para o que tem medo! Faça aquilo de que tem medo! Veja aqueles dois. Você os ama? (Irene continua calada) Responde, você os ama?

Irene, a autora: Amo, amo, amo muito! Mas eu não posso protegê-los do mal!

Afrodite: Pode. Você pode se lhes der uma dose um pouco maior de coragem.

Irene, a autora: Eu não sei! Eu não sei!

Afrodite: Olhe para isto!

 

 

 

4ª dança

1.Três anos atrás. 1ª dança macabra.


Antônio: Desliga essa porra!

Helena: Mas é o Bolero de Ravel, meu amor.

Antônio: A mesma melodia, a mesma melodia como uma ladainha de igreja!

Helena: Eu gosto. Escuta... A caixa clara como um pulso que não para. E a flauta que fica deslizando o tempo todo...

Antônio: Por que você não fica calada?

Helena: Eu estava calada, estava ouvindo o oboé, o trompete, a flauta. Não parecia um terceiro instrumento, aqueles três juntos?

Antônio: Você bagunça toda a casa, bagunça o meu tempo, bagunça o meu silêncio.

Helena: Estou vendo você se matando na minha frente. A minha companhia parece te fazer mal. Lembra quando você me convidou para andar na beira do lago? Nós sabemos em três segundos quando amaremos uma pessoa para sempre. Você me convidou para passear, você me convidou para a sua vida... E sabia muito bem que eu existia, que eu me movimentava, que eu não era muda, que eu não era insípida nem descorada.

Antônio: Você é kitsch porque se impõe demais. E invade o meu espaço. É convencida e irritante, insuportável e se veste mal!

Helena: O que você ama em mim é exatamente o que diz que não suporta. Pensa mesmo que é possível existir no modo reflexo? Ou que poderia apagar tudo, apagar a náusea, hein? Na piscada seguinte a consciência lança a luz e esquadrinha tudo por dentro. Não vá pensando que escapa de sentir o amor no grito e nestes purgantes que o diabo te fornece. Vai nessa!

Antônio: Cala a boca, vai pregar em outra freguesia! Você me dá o que eu não te peço. Você é uma pessoa, uma interferência, uma tentação.

Helena: Tem razão. Eu quero chorar. Posso?

Antônio: Não. Porque se você chorar eu vou me lembrar que te enganei, que escondi coisas de você, que fui até cruel, que te fiz de boba. E eu não posso me lembrar disso.

Helena: Então eu devo partir, não é?

Antônio: Sim. Você pode ir sozinha, já sabe o caminho.

Helena: Mas eu não quero ir, juro que não quero. Entenda, eu não preciso ficar. Não é porque eu preciso, não é um costume, um ritual. Estar na sua companhia não entra nestes rituais prosaicos da vida. Pode parecer confuso, mas é fácil, é um estalo que dá na gente.

Antônio: Hermética, convencida, metida a mística e intelectual.

Helena: (Sorri alto, quase uma gargalhada) Você não é nada bom em tentar me afugentar. Se entrega na mesma hora. Nós estamos apegados ao enredo, à estorinha. O meu e o teu, o emprego, a casa, o jantar em família. Não é isso que somos nós.

Antônio: Você sabe que eu não aguento a náusea como você aguenta.

Helena: Não estou sentindo agora... a náusea...você está aqui.

Antônio: Coloca de novo, então.

Helena: O que?

Antônio: Aquele maldito e extasiante bolero. Era mentira quando eu disse que não gostava desta melodia e que não via nenhuma graça em sua orquestração. Era mentira...

Helena: Claro que eu sei que era mentira.

Antônio: Por que você me dá ouvidos? Por que chora, se magoa e vai embora como uma garotinha?

Helena: Está aí uma boa pergunta que eu não sei te responder.


2.

Irene, a autora: Não se esqueça da menina! Não se esqueça da menina!

Sulamita: Acorda Esmeralda! Você está tendo um pesadelo!

Irene, a autora: Eu vou te tirar daqui. Nós vamos de navio.

Sulamita: De navio? Para onde nós vamos Esmeralda?

Irene, a autora: Para o novo mundo. Lá você terá uma cama quentinha para dormir e vamos comer doces e fazer coisas como tomar banho de piscina ou passear por labirintos de árvores. Sei que Helena tomou o vapor para lá também.

Sulamita: Posso levar a minha filha, a boneca?

Irene, a autora: Claro que pode. Lá no novo mundo não tem guerra, nem perseguição. Nós podemos ir e vir sem ninguém nos espionar ou perguntar a todo o momento pelo nosso número de identificação.

Sulamita: Eu quero ir! Quero viajar no vapor! Seremos eu, você e Helena?

Irene, a autora: Sim!



 

3. Rio de Janeiro, 1973

Antônio: Mamãe, posso levar a travessa para a mesa?

Sulamita: Está pesada, menino!

Antônio: Eu consigo. Sou muito forte e musculoso! Olha!

Sulamita: Meu Deus, que músculos incríveis! Leva já a travessa para a mesa, pare de segurar com uma mão só! Volta depois aqui e aproveita leva os guardanapos que ficaram faltando.


(A pequena família se reúne à mesa. Sulamita, seu marido Francisco e seu filho Antônio.)


Sulamita: Vamos agradecer: Abençoai, Senhor, a nós e os alimentos que recebemos de vossa bondade, e dai a todos os homens da terra o pão de cada dia. Em nome do pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Antônio: Mãe, tava bom! Eu adoro muito a sua comida de domingo. Posso pegar a sobremesa?

Sulamita: Eu quero que vocês me escutem um pouco. Eu tenho uma notícia para dar. Uma notícia que pode parecer uma má notícia, mas realmente não é uma má notícia quando se pensa nos planos de Deus, que são muito maiores do que a gente imagina com a nossa visão tão pequena das coisas.

Antônio: Mãe, o que é? Fala mãe!

Francisco imediatamente fica com os olhos avermelhados de um choro que precisa e deve conter.

Sulamita: Eu não tenho me sentido bem e fiz uns exames. Estou muito doente, pode ser que Deus me leve para junto dele.


Antônio, aos prantos, se joga em cima da mãe.

Antônio: Não mamãe, você não vai morrer nunca! De jeito nenhum! Não vou deixar você sozinha um só segundo! Se eu avistar uma rasga mortalha em cima do telhado, vou jogar pedra e tudo que estiver pela frente, e estarei há postos com uma mangueira para jogar água nela também!

Sulamita: Não seja o rei do drama, você já é um rapaz crescido. Deus está o tempo todo fazendo milagres, mas pode ser que ele esteja com saudades e queira me levar. Era para eu ter me encontrado com ele há muitos anos atrás, mas uma pessoa me tirou do frio e me deu água e comida. Eu entrei no vapor com ela, mas a perdi de vista. Que pena, não consigo me recordar de seu rosto. Mas me lembro que me levantou do buraco quando o último fósforo já estava se apagando. Na rua escura, lamacenta, sem vida, com os Olhos vigiando o tempo todo, ela me viu no beco, dentro da vala. Quando cheguei aqui ainda tinha um corpo de menina, mas meu espírito tinha envelhecido muito. Claro que não pensei nisso quando cheguei, naquele momento não conseguia parar de sentir o sol e observar sua luz sobre o verde e sobre o azul daqui. Agora, pode ser que já esteja na hora...

Sulamita tem uma tosse convulsa e começa a expelir sangue pela boca e pelo nariz. O tempo corre a favor da morte naquele lar simples e acolhedor.



Sulamita: Isso vai passar. Antônio, pegue ali um pano de prato, não fiquem muito perto. Obrigada, meu lindo filhinho. Antônio, ajude seu pai a guardar a comida dentro dos potes e colocar tudo na geladeira para não estragar. A roupa da casa toda precisa ser lavada. Francisco, me ajuda aqui a levantar. Está precisando aparar esta barba, meu amor. Deixa que eu faço isso. Essa tosse que não passa. Acho que estou muito melhor hoje. Antônio, mamãe tem que ir para o hospital, você não se esqueça de rezar todas as noites para o seu anjo da guarda, está bem meu menino? Francisco, deixa eu fazer o nó da gravata. Por favor, não deixe o menino para trás, na estrada. Francisco, haja o que houver, não deixe o menino para trás! Pare de chorar, Francisco! Vai trabalhar! Não vai ficar aqui não, o seu patrão precisa de você. Não deixe o menino, Francisco! Me prometa! Me prometa! Antônio! Antônio! Antônio! Pare de chorar, olhe para mim. Você não está sozinho, acredita! Não entre na amargura, na revolta, na desilusão. Solta isto tudo junto com o choro. O seu pai não está aqui, talvez aconteça antes que ele volte. Ele tem medo, não é forte como você, menino. Chegue aqui pertinho. Como você é bonito, meu menino! Vou cantar uma música que minha mãe cantava para mim lá no campo do silêncio:

 

TODAS AS MANHÃS ELA CORRIA NA DIREÇÃO DO MAR E NINGUÉM VIA SUAS LÁGRIMAS


O CORAÇÃO PULSANDO, A ALMA ANSIOSA

SEGURANDO NO PEITO A CARTINHA...


SERÁ QUE SEU BEM VOLTAVA, VOLTAVA PARA OS SEUS BRAÇOS CASTOS, DEPOIS DE SE PERDER NO CORPO LUXURIANTE DA GUERRA?

TODAS AS MANHÃS ELA RECOLHIA OS SONHOS CAÍDOS POR TERRA NA NOITE SEM FIM

E REFAZIA O VERSO QUE O VENTO LEVAVA PARA JUNTO DO SEU BEM.

DIA E NOITE, NOITE E DIA...

SERÁ QUE SEU BEM VOLTAVA, VOLTAVA PARA OS SEUS BRAÇOS CASTOS, DEPOIS DE SE PERDER NO CORPO LUXURIANTE DA GUERRA?


É uma música de despedida, de saudade, mas também de esperança. Filho, se eu pudesse dizer exatamente tudo o que era preciso para que você soubesse como fazer, quando precisasse, por toda a sua vida... E não sofresse... Eu quero que você ame, que acredite no amor! Estarei sempre ao pé de ti, podem dizer o que quiserem, que eu morri, que fui devorada pelos vermes, que sou apenas pó num caixão... Não acredite em nada disso, está bem? Ao pé de ti. Pegue aquele pano, amarre e prenda a minha boca, eu não quero passar o vexame de ficar com a boca escancarada. Não tenha medo do que você verá quando a minha luz se apagar. Não tenha medo de nada, meu filhinho...

 

2ª e última dança macabra.


1. Helena chega do trabalho e encontra Antônio completamento bêbado, drogado e com outra mulher em sua cama.


Helena: Hoje esfriou. E choveu. Comprei um guarda-chuva que não quebra com as rajadas fortes de vento que tem aqui. De repente eu entrei numas de usar guarda-chuva.

Antônio: Você chegou cedo, antes da hora...

Helena: Antes de que hora?

Antônio: Eu só passo meu tempo com ela e com as outras...

Beatriz: Como é que é?

Helena: Isto não é uma maneira saudável de se relacionar, meu amor. Ela está nua. Não está com frio? Vista-se, por favor, para não pegar uma pneumonia.

Beatriz: Ele me disse que morava sozinho. E que tinha vinho e maconha.

Helena: O que ele disse é a mais pura verdade. Ele mora sozinho e tem vinho e maconha na dispensa.

Beatriz: Você não vive aqui com ele? Não é sua esposa?

Helena: Eu não sei bem o que você quer dizer com ser uma esposa. Eu fiz um voto de amor, como uma vestal eu velei pelo perpétuo fogo sagrado... Ser simplesmente uma esposa não é, de longe, o que um dia pensei e senti que tínhamos. Mas agora vejo que me enganei. Eu me enganei. São trabalhos de amor perdidos...

Beatriz: Vestal? Nunca ouvi esta palavra. Olha, ele flertou comigo. Se insinuou, jogou charme. Ele fez isso comigo e com as outras, mas eu também achei que era especial.

Helena: Pobrezinha. Eu não quero saber de nada disso.

Antônio: Não vá, por favor!

Helena: Como é difícil te ver assim vestido com estes trapos, ver esta ferida aberta cheia de vermes na tua fronte. Como dói ver a tua substância pujante e indômita, de armadura e elmo, em cima do corcel, se esvanecendo completamente na bruma...

Antônio: Não vá, por favor!

Helena: Adeus, Antônio.

2.

Afrodite: O que deu na cabeça desse Antônio?

Corifeu: E eu que vou saber?

Afrodite (Dirigindo-se a Irene) Você sabe.

Irene, a autora: Não. Não sei.

Afrodite: Mas eles têm a sua humanidade. Eles funcionam como você funciona.

Irene, a autora: Foram criados juntos, para serem um do outro. O cheiro dos dois era muito parecido. Às vezes eu os confundia, quando se liquefaziam em minhas mãos.

Corifeu: E como é isso?

Irene, a autora: Era como se não houvesse separação. É confuso para dizer em palavras. Quando estavam juntos não havia o que se chama de espaço tempo.

Afrodite: E o que é o espaço tempo?

Irene, a autora: Eu não sei bem o que é, mas sei que dói. O espaço tempo dói na alma.

Afrodite: Chamem aqui o velho Tirésias. Rápido!


Entra o oráculo Tirésias


Tirésias: Bela!

Afrodite: Meu querido, poderia me esclarecer uma coisa?

Tirésias: Me empenharei, bela! O que você quer saber?

Afrodite: É um assunto metafísico.

Tirésias: Metafísica? Que coisa mais chata! Quem mandou eu ser um velho cego vidente, que anda às voltas com fantasmas e previsões...

Irene, a autora: Posso perguntar?

Afrodite: Mas é claro!

Irene, a autora: O que é espaço tempo, senhor Tirésias?

Tirésias: Isto não existe.

Irene, a autora: Mas... eu estava dizendo à senhorita Afrodite que Helena e Antônio saíam do espaço tempo quando se amavam. O tempo do amor não é o mesmo tempo do espaço tempo.

Tirésias: Bingo! Desvendou o enigma. Espertinha você, hein?

Irene, a autora: Mas não durou muito, o tempo do amor.

Tirésias: Isso acontece, ora! Davam uma importância maior para a miragem, a sombra na caverna. A carne se decompõe, a carne é irreal.

Irene, a autora: Esse tempo deles, o tempo do amor, onde foi parar? Por que o tempo do amor se foi?

Tirésias: Foi para onde garota? O tempo do amor continua lá, é só acessar. Você sabe como fazer isso?

Irene, a autora: Não tenho a menor ideia.

Tirésias: Infelizmente não posso fazer isso por você, criança. A criação é sua. O que eu posso te adiantar é que não se pode amar e sentir coisas como tristeza, medo, dúvida. O amor lava todas as tristezas e todas as sombras.

Irene, a autora: Então ele não a amava. Que triste.

Tirésias: Que triste para quem?

Irene, a autora: Para Helena. Porque ela o amava.

Tirésias: Ela o amava? E era triste? Não, não, não, não, não! Criança, como ela poderia ficar triste se amava? Ainda não caiu a ficha? Posso citar o Livro Eterno aqui? Teria alguma restrição?

Corifeu: Tem certeza, senhora Afrodite? Não acho boa ideia se meter com coisa de judeu e cristão.

Afrodite: Olha, a esta altura creio que seja válido expandirmos os nossos horizontes e não ficarmos restritos ao mundo clássico. O que diz o Livro Eterno, meu velho?

Tirésias: Aí vai, então. Essa parte aqui: "O amor é paciente, é benigno. O amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconveniente, não procura seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. "

Irene, a autora: Vê, ainda há tristeza no amor.

Tirésias: Minha santinha, o amor não é um sentimento sentimentaloide, é uma escolha absolutamente iluminada. Ele está acima dos caprichos da carne, ele solta, projeta no outro, contagia. O amor não se rebaixa para apanhar o poder. Ele paira sobre tudo, doa, doa, cria, cria!

Irene, a autora: Entendi. Como posso fazer para ajudá-los a acessar novamente esta força?

Tirésias: Comece a soltá-los.

Irene, a autora: E como eu faço isso?

Tirésias: Amando-os incondicionalmente. Eles vão sentir e vão lembrar.

Irene, a autora: Do amor que sentiram?

Tirésias: Do amor que sentem.





 

3. Confusão no meio da rua. Homens armados perseguem Antônio e Helena. Tiros são ouvidos. Os transeuntes saem correndo.


Antônio: Helena, corre, corre! Entra na barca! Corre!

 

(Helena segura Antônio pela mão e entra num beco com ele.)


Helena: Antônio, preciso voltar e avisar ao José!

Antônio: Nós já falamos com o José. Avisar o que agora?

Helena: Elas acabaram de me mandar uma mensagem. A mulher e a filha. Ele precisa saber, Antônio! É boa notícia!

Antônio: Nós despistamos dos caras. Vamos correndo para a barca!

Helena: Antônio, o José está no fim, talvez não tenha outra chance. Ele precisa saber que elas não têm mágoa, que elas perdoaram.

Antônio: Volta aqui! Se você levar um tiro o José não vai ficar sabendo de nada! Volta aqui, Helena!

(Helena resolve mesmo fazer o caminho de volta quando percebe dois homens armados se aproximando. Os homens se aproximam e começam a lutar com Antônio. Helena tenta impedi-los, mas um terceiro homem segura Helena, que começa a se debater.)


Antônio: Solta ela! Ela não tem nada a ver com isso! Está bem, acabem comigo! Me queimem para que eu fique calado para sempre! Helena não tem como provar nada contra vocês, ela não sabe de nada. Eu não mostrei nada para ela. Só fui até lá porque era o único lugar para onde eu poderia ir. Era o único lugar onde eu poderia estar, onde Helena estivesse. Queria me despedir.

Helena: Eu nunca me acostumei com a tua ausência. Sabia que uma hora ou outra voltaríamos um para o outro, porque este é o nosso estado natural. Obrigada por ter me colocado nesta situação absurda, com um bandido apontando uma arma para a nossa cabeça. Estou feliz, porque você está aqui.


(Um policial à paisana vê Helena e Antônio serem ameaçados e atira em um dos agressores. Antônio aproveita a situação e consegue dar um chute forte no peito do outro que cai no chão. O terceiro agressor sai correndo, mas imediatamente o homem que estava caído atira no ombro de Antônio.)


Helena: Vem comigo, Antônio, para Niterói! (Antônio está ferido, mas consegue correr ao lado de Helena. Os dois dão as mãos e quando estão quase chegando na barca ouve-se outro tiro que acerta Helena e ela cai no mar. Antônio mergulha para tentar salvá-la.)

5ª dança

(Início da 5ª dança em modo larguíssimo. Helena caminha pelo Centro da Cidade.)



Helena: Bom dia, tudo bem? Sempre que passo por aqui eu não consigo deixar de prestar atenção na sua música. O senhor precisa de cordas novas, está faltando uma.

José: Que bom que você notou. Talvez você queira me dar uma corda nova.

Helena: Possivelmente eu gostaria de lhe oferecer uma corda nova, embora esta corda não seja determinante na qualidade da sua música, senhor...

José: José.

Helena: Muito prazer. Me chamo Helena. Sou escritora.

José: Escritora é uma excelente escolha.

Helena. Na verdade, não foi uma escolha. Eu nasci com isto. Algumas profissões não são escolhidas por nós, elas nos escolhem. Somos condenados a elas, para o bem ou para o mal. O senhor se importa se eu lhe fizer algumas perguntas?

José: Por que eu me importaria? Hoje nem vai chover. Eu conheço você, antes você se molhava quando chovia. Por que parou?

Helena (sorrindo): Eu encontrei um guarda-chuva que não quebra com a ventania e gostei dele. Mas não é sempre que uso. Eu gosto de coisas como chuva, quando a natureza se impõe e lava a terra e revolve todas as certezas das miseráveis minhocas. Senhor José, estranhamente eu me preocupo com a sua felicidade. Pode ser que eu esteja errada e se eu estiver o senhor me diga, mas sinto a sua tristeza quando eu passo. Embora ela pareça lhe inspirar a tocar tão bem aquela música, talvez seja insuportável, como uma chaga aberta.

José: Eu pensei que tinha me acostumado e que ninguém desconfiaria. Para não sentir eu bebi tudo o que havia para beber: cerveja, vinho, whisky, tequila, licor, absinto, gim, cachaça, vodka, rum, grappa, ginjinha, perfume francês, perfume nacional, álcool 70%, álcool gel...

Helena: E então?

José: E então eu perdi tudo o que amava.

Helena: O senhor tem a náusea.

José: A náusea?

Helena: Eu ando investigando a náusea a um certo tempo, porque nasci com ela.

José: E o que descobriu nas suas investigações?

Helena: Passei por fases, a fase da descoberta do mundo, era quando eu conseguia fingir que a náusea não existia, eu a prendia numa vasilha e ficava segurando a tampa. Era um pouco desconfortável ter que andar com ela presa para cima e para baixo. E logo a eficácia deste método começou a apresentar falhas. Ela me enganou, empurrou com força a tampa e saiu. Então começou a aparecer para mim nos lugares onde eu ia. Me surpreendia como um fantasma. Quando finalmente resolvi olhar para ela, meu corpo foi ficando gelado de tanto pavor, ela se contorcia em minha direção, lançando gritos assustadores de perdição e sofrimento. Eu sentia o mau cheiro em tudo, em mim também, uma lança em meu fígado e uma estrada infinita onde eu caminhava, presa numa canga e segurando com os braços para cima uma estrutura de concreto, como uma aduela muito pesada. Eu só sentia dor, mais nada.

José: Como uma escrava.

Helena: Exatamente.

José: E o que mudou?

Helena: Eu entendi que não poderia simplesmente jogar na face de Deus a minha vida, a vida que Ele me dera, porque isso seria muita ingratidão. Mas precisava acordar porque eu estava presa na estória que me contaram. Me vendi inteirinha para o mundo e não queria soltar aquilo que eu era, lutava, chorava, querendo, ansiando, desesperando. José, então eu descobri que a culpa não era da náusea. A náusea estava lutando por mim, para que eu começasse a entender o que vim fazer aqui. Agora me diga o que lhe dói?

José: A mim? Ora, eu não tenho importância nenhuma, moça.

Helena: O senhor tem importância para mim. A sua música era um pedido de socorro. Os outros não ouviram, mas eu ouvi, não pude deixar de ouvir. O senhor nunca esteve invisível nem inaudível para mim. Então me diga, do que precisa além de cerveja, vinho, whisky, tequila, licor, absinto, gim, cachaça, vodka, rum, grappa, ginjinha, perfume francês, perfume nacional, álcool 70%, álcool gel?

 

2. Helena está em casa conversando com uma amiga.

 

Helena: Eu aluguei um carro. Você dirige porque eu nunca tive carteira.

Maya: Você é a pessoa mais louca que conheço.

Helena: Tenho uma pista do paradeiro delas. Não é muito longe daqui. Mas não contei nada para o José, não seria justo lhe dar falsas esperanças.

Maya: Você já ganha tão pouco naquela redação de merda que te explora, que te obriga a mentir 24 horas por dia e ainda inventa mais despesas.

Helena: Eu vou me libertar desse empreguinho que me escraviza, o meu romance vai fazer muito sucesso, vai virar filme, vai virar série. O que me aconteceu nos últimos anos, hein? O isolamento, o desprezo, só me sobrou você, Maya... (As duas riem.)

Maya: Obrigada pela parte que me toca.

Helena: Você é um anjo, garota, um anjo em minha vida. Foi difícil entender isso, ao mesmo tempo que somos sozinhos, somos um com todos os outros. Acordar, planejar o dia, olhar tudo em volta, sentir a dor, não permitir que a dor infligida todos os dias transmute a nossa natureza pura, incorruptível. Maya, eu quero ajudar a curar aquele estranho que toca na praça.

Maya: E ao mesmo tempo criar uma obra, algo que faça sentido, algo que ajude no despertar do Boa Noite, Cinderela.

Helena: Ele me comove, porque é tão inteiro, tão verdadeiro na sua dor. Ele não finge uma alegria mentirosa, uma existência mal costurada e embrulhada de qualquer jeito.

Maya: Eu só queria entender como é que é uma existência mal costurada e embrulhada de qualquer jeito. Isso é muito coisa de escritora, desafiando como uma louca o sentido das palavras. Mas me diz aí, não conheceu ninguém que pudesse fazer ao menos uma pequena cosquinha no seu coração? Como você aguenta esta abstinência total?

Helena: Sobrevive-se bem sem sexo.

Maya: E sem amor? Helena, você não pode passar a vida suspirando por mendigos bêbados que passam a vida a tocar a mesma música na praça.

Helena: Fique tranquila, Maya, eu não suspiro pelo José. Ele está cansado, muito cansado, não dura muito. Como eu poderia vê-lo partir com esse desgosto na alma?

Maya: E agora?

Helena: Shakespeare?

Maya: Sempre às voltas com sonetos e poemas.

Helena: A alma do homem é uma fratura exposta na obra daquele inglês filho da puta, gênio dos quintos dos infernos!

Maya: Helena, eu não sei como você ainda não virou uma mendiga puxando uma carrocinha.

Helena: Não precisamos de mais muita coisa se tivermos Shakespeare. Talvez, aqui e ali, em períodos bissextos, meia porção de sexo e sorvete de pitanga.

Maya: E o que ele diz assim de tão extraordinário?

Helena: Ora, ora...

 

WHEN, IN DISGRACE WITH FORTUNE AND MEN’S EYES,

I ALL ALONE BEWEEP MY OUTCAST STATE,

AND TROUBLE DEAF HEAVEN WITH MY BOOTLESS CRIES,

AND LOOK UPON MYSELF, AND CURSE MY FATE,

WISHING ME LIKE TO ONE MORE RICH IN HOPE,

FEATUR’D LIKE HIM, LIKE HIM WITH FRIENDS POSSESS’D,

DESIRING THIS MAN’S ART AND THAT MAN’S SCOPE,

WITH WHAT I MOST ENJOY CONTENTED LEAST;

YET IN THESE THOUGHTS MYSELF ALMOST DESPISING,

HAPLY I THINK ON THEE, AND THEN MY STATE,

LIKE TO THE LARK AT BREAK OF DAY ARISING

FROM SULLEN EARTH, SINGS HYMNS AT HEAVEN’S GATE;

FOR THY SWEET LOVE REMEMBER’D SUCH WEALTH BRINGS

THAT THEN I SCORN TO CHANGE MY STATE WITH KINGS.

 

Maya: Não entendi nada, baby.

Helena: I like the accent, indeed, my dear. Eu também não entendi muita coisa desse inglês arcaico, mas é possível sentir a música por trás destes versos.

Maya: Traduz, traduz...

Helena: Então vou fazer o serviço completo. Com música.

Maya: Coloca então uma coisa épica e esplêndida: a trilha de O Gladiador!

Helena: Tudo a ver! Toma estas flores e o véu de renda. Agora eu sou o teu amado. Ouve, minha adorada! (Indicação de entrada da canção Now We Are Free de O Gladiador)

 

QUANDO EM DESGRAÇA, SEM SORTE E AFASTADO

DOS HOMENS, SOZINHO, EM MEU EXÍLIO

PERTURBO OS CÉUS SURDOS, A GRITAR SEM SOSSEGO,

E OLHO PARA MIM, E AMALDIÇOO MEU DESTINO,

SONHANDO SER MAIS AFORTUNADO,

COMO HOMEM DE MUITOS AMIGOS,

COBIÇANDO SEUS TALENTOS E VISÃO,

E AQUILO QUE MAIS APRECIO SINTO MENOS SATISFEITO;

MESMO, NESSES PENSAMENTOS, QUASE ME DESPREZANDO,

FELIZ, PENSO EM TI-DEPOIS EM MEUS BENS

(COMO A COTOVIA ELEVANDO-SE AO ROMPER DO DIA

DAS ENTRANHAS DA TERRA), EM HINOS A LOUVAR O CÉU;

POIS, LEMBRAR DE TEU DOCE AMOR TRAZ TANTA RIQUEZA,

QUE DESDENHO TROCAR MEU DOTE COM REIS.

 

Maya: Helena, agora acho que entendo porque só lhe sobraram uma amiga e um mendigo de praça para ouvir as suas ladainhas...

Helena: Me fala, estou ansiosa para saber, Freud.

Maya: Você olhou para dentro e não aceitou mais aqueles licores e manjares requintados que lhe serviam e disse para si: Isto tudo é mentira e perda de tempo! Pare de choramingar e encare a realidade com olhos bem abertos, lute sem temer a morte, sua imprestável! E por favor, perca seu tempo com Shakespeare!

Helena: Como é que você adivinhou, Freud? Preparada para pegar a estrada?

Maya: Eu não trocaria esta aventura por nada, quero aprender como se faz.

(Quando as duas amigas estavam saindo o telefone toca e Helena volta para atender.)

Voz Masculina: Boa tarde. Por favor, eu gostaria de falar com a srta. Helena Ribeiro?

Helena: É ela quem está falando. Quem fala?

Voz Masculina: Aqui é do Campo do Silêncio. Quer dizer, não trabalhamos neste lugar horrível, somos agentes disfarçados. Nós ajudamos os que precisam. O seu número estava na nossa lista secreta.

Helena: Desculpa, não entendo. Campo do Silêncio? Não conheço este lugar.

Voz Masculina: Escute com atenção. O seu nome está na nossa lista. Isto tudo parece absurdo, mas por favor, confie em mim. A srta. foi apagada, isto na verdade é um procedimento muito simples, trivial. Eu não tenho autorização para desapagar a srta. completamente, mas preciso que se lembre da menina, ela precisa da sua ajuda. Ela fugiu com a mãe. Preciso que encontre as duas e ajude.

Helena: Que menina, eu não estou entendendo nada. Olha, meu senhor, eu tenho um compromisso, estou saindo agora, vou pegar a estrada...

Voz MasculinaPássala! Desapaga!

(Do outro lado da linha Helena ouve uma orquestra que vai chegando no momento da maior tensão dramática. Entra em cena um trovador medieval)

 

Trovador:

 

NOITE, NOITE, TRAGA-ME O TEU SILÊNCIO, A TUA VERDADE, TUA LUA PRATEADA!

VAI ATÉ O FIM DO MUNDO E RESGATE A PEQUENA INFANTA!

Ó, ALMA IMPRESTÁVEL, MUNDANA, COVARDE! QUEM TE IMPLANTOU NO ESPÍRITO ESSE MEDO TONTO DE ACABAR?

ENTRE NO BOSQUE TEMPERADO E APRENDA COM OS ARTÍFICES QUE TECEM NO SILÊNCIO.

ELES NÃO DORMEM COMO VOCÊ DORME.

NÃO VÊS QUE AQUI TEM MUITO O QUE FAZER?

OLHE PARA ELA COMO FAZ A CORUJA COM SEU NINHO.

O PEQUENO SER, DESCARTÁVEL, DÉBIL, ESQUÁLIDO, APAGANDO O ÚLTIMO CALOR.

ARRANCAM DA TERRA, NÃO DEIXAM CRESCER...

O DELICADO, O VERDADEIRO, O BELO.

O QUE CHAMAS DE VIDA

E TE APEGAS COMO A UMA LAMA VISCOSA...

É SONHO.

(O áudio da voz do trovador e da música desaparecem)

Helena: Sulamita? (Sorri e se lembra) Minha menininha!

Voz Masculina: Nós não temos como sair daqui agora. Você precisa encontrar a menina e colocá-la dentro do vapor.

Helena: Como faço para chegar lá?

Voz Masculina: Não se preocupe com isso. Nós entraremos em contato. Confie em nós. Agora eu preciso desligar.

Helena: Ei senhor! O senhor não tem como me desapagar completamente? Eu não quero mais esquecer...

Voz MasculinaInfelizmente, senhora, não tenho autorização.

Helena: Um dia serei completamente desapagada?

Voz Masculina: Pode ser. Vai depender de inúmeras variáveis.

Helena: Existem desapagados andando por aí?

Voz Masculina: Muitos, srta. Preciso desligar. Obrigada. Pássala! Apaga!

(ruído de linha livre de telefone)

Maya (Voltando e procurando por Helena): Quem ligou? Alguma coisa importante?

 

Helena: Era o cara da NET

 

Maya: Que demora. Estava marcando um encontro amoroso com o cara da NET?

 

Helena: Não. Ele era muito educado, atencioso, gentil, estava me oferecendo um pacote irrecusável, um super combo pela metade do preço que pago.

 

Maya: Hum... Então tá. Vambora?

 

Helena: Vamos.

 

3.
Uma casa muito simples, com três pequenos cômodos, mas impecavelmente limpa no município de Tanguá. À porta uma mulher de meia idade, bastante envelhecida, e uma mulher de uns vinte anos. Ao lado uma criança de uns cinco anos de olhos enormes, com o rosto sujo como se estivesse manchado de lama ou fuligem. A mulher de vinte anos segura também um bebê recém-nascido no colo.

Maria de Lourdes: Foi a senhora que mandou a mensagem pelo zap...

Helena: Sim. Essa é minha amiga, Maya. Nós podemos conversar um pouco?

Maria de Lourdes: Sentem, por favor. Juliana, passa o café para as moças. Olha, moça, aqui todo mundo sobreviveu. O menino mais velho virou militar, já está casado com uma moça advogada. Moram no Rio. O do meio fica por aqui cuidando da mercearia, é bom em matemática, faz serviço de eletricista, pedreiro, conserta tudo. Essa maluca aqui arrumou barriga antes da hora, não quis saber dos estudos, mas é ótima filha, ótima mãe. Mora num puxadinho no quintal com as crianças e o marido. É esta a nossa vida. Vida simples, nada de especial. Vamos levando. Podem dizer isso tudo ao José.

Helena: José sofre muito, de saudades, diz que perdeu tudo o que amava.

Maria de Lourdes: Essa menina era pequena quando ele se perdeu no mundo. Nunca coloquei outro no lugar. Fiquei assim só mesmo...

Helena: Ele batia em vocês? Era violento?

Maria de Lourdes: Ele só conheceu o sofrimento. Só sabia expressar o sofrer. Andava sempre amuado. Com a cachaça ele endoidava de vez. Batia, gritava, dizia que tínhamos um "comprô” contra ele. A senhora sabe o que é isso, um "comprô"?

Helena: É um projeto tramado secretamente por algumas pessoas contra outra pessoa.

Maria de Lourdes: Ele era muito inteligente, muito culto, lia, falava bonito. Juju, pega ali os álbum? Olha aqui, moça, como o José era bonito. Eu pensei que estava morto, quando a senhora deu notícia pelo zap me deu um nó na garganta. O Zé inda tava vivo!

Helena: A senhora parece que perdoou, que ainda ama o José.

Maria de Lourdes: E quem disse que se deixa de amar, moça? Essa menina, Juju, era tão apegada no pai... Era louca com ele.

Maya: A senhora se lembra dos bons momentos?

Maria de Lourdes: Sim. Tinha vez que ele passava a semana toda alegre, trabalhando, cuidando da casa, fazendo os móveis.

Maya: Ele era marceneiro?

Maria de Lourdes: Sim. Era o melhor do bairro. Morávamos no subúrbio do Rio. Mas a tristeza vinha de dentro dele, não era do mundo externo, era dele. Ele sabia que não era culpa nossa, que estava nele. Ele sabia que estava nos maltratando, ele sabia que não era justo, que não era certo. Eu não tenho estudos, não sei as psicologia, mas era de dentro dele, de alguma coisa que faltava, um pedaço dele que faltava.

Helena: O José está doente. Talvez não dure muito. A senhora gostaria de encontrá-lo?

Maria de Lourdes: Eu não sei moça, se consigo. Antes do José desaparecer ficou um dia inteirinho deitado na soleira da porta, o rosto todo vomitado, ele gemia de dor, ficava gemendo baixinho, não abria os olhos, os cachorros vinham e lambiam ele. Tinha tomado cachaça no bar, depois esvaziou todos os vidros de perfume da casa. Se alguém tentasse ajudar, ele gritava, dava pontapés... (Maria de Lourdes é levada pelo choro, como uma barragem que se rompe)

Helena (segurando nas mãos de Maria de Lourdes): Ele me disse que parou, que agora não come nem um bombom com licor.

Maria de Lourdes: A senhora acredita?

Helena: Ele está diferente. Só vive para a música agora...

Maria de Lourdes: A música do Zé... Sempre foi artista o Zé... Todo mundo falava... Eu rezava para que os meninos não dessem para artista. Não queria mais sofrimento. Parece que sentem na alma as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo...

(Helena recebe uma mensagem no celular: SE APROXIME DO MENINO PEQUENO E PERGUNTE BAIXINHO EM SEU OUVIDO: O QUE VOCÊ VIU ONTEM A NOITE?)


Helena: Com licença, posso ir a toalete?

Maria de Lourdes: Claro, é logo ali à frente.

Helena: (Helena finge usar o banheiro, dá descarga e quando abre a porta vê o menininho remelento, filho de Juliana, na porta. Ela se abaixa, para olhar em seus olhos.) Então você está aqui, menininho. Como é seu nome?

José Carlos: José Carlos, como o vô. A senhora conhece o vô, não é? O vô gostava de me rodar, eu lembro.

Helena: Lembra-se do seu avô?

José Carlos: Ele inda vem. O vô vem aqui e me roda. Só depois que a casa dorme.

Helena: José Carlos, e ontem, o que você viu ontem?

José Carlos: O vovô chegou ali na frente da mangueira. Ele subiu no pé e me deu uma manga linda para comer, lá do alto. Vem aqui, vou te mostrar. (O menino tira debaixo da cama um saco com uma manga dentro) Vou comer só de noite, depois do jantar.

Helena: E aconteceu mais alguma coisa?

José Carlos: Depois chegou um moço alto, muito, muito alto, assim, ó (o menino olha para o teto) A cabeça do moço batia no teto e tudo brilhava dentro e fora dele.

Helena: E esse moço alto disse alguma coisa?

José Carlos: Disse. Assim: O RIO ESTÁ CORRENDO, MENININHO. VEJA. NÃO É BONITO QUANDO O RIO CORRE COMO DEUS QUER? Então apareceu um rio, com muita, muita água e muitos, muitos peixes e um verde de doer nas vista da gente. Disse que a moça escritora deveria encontrar a menina naquela cidade destruída pelos homens que não amavam, do outro lado do oceano. A menina está presa no buraco.

Helena: E como eu chego lá, José?

José Carlos: Pela porta estreita. Ali.

(Helena ouve um zumbido baixinho que vai aumentando ao ponto de começar a ouvir uma ensurdecedora turbina de avião. Uma ventania a levanta do chão, vaporizando o seu corpo que se desfaz no ar. Helena ainda sente que está viva, começa a esbarrar nos móveis com força, sobe e desce pelo perímetro entre o dentro e o fora da pequena propriedade em Tanguá. Não existe mais gravidade, tampouco inércia. Logo percebe que está a muitos metros acima do chão. E sente o silêncio.)

Última Dança

 

Afrodite: Não foi bom? Existe uma memória na água. Ela é como um gravador natural. Você se lembra agora?

Helena: Eu me chamo Helena. Gosto de escrever, gosto de música, gosto de correr livre, gosto de alguém que considero especial.

Afrodite: Quem?

Helena: Eu não me lembro mais. Quis esquecer. De propósito.

Afrodite: Por que?

Helena: Porque ele me traiu.

Afrodite: Ele tinha outras?

Helena: Não sei. Acho que ele as inventava. Mas ele traiu o nosso pacto, de cuidar um do outro. Só olhava para ele próprio... E sua sombra...

Afrodite: E mesmo assim você foi até lá e trouxe a menina de volta...

Helena: Me pediram. Os agentes do campo do silêncio. O menininho me ajudou, o neto daquele músico lá da rua.

Afrodite: Para que ele voltasse... Está vendo ali na janela?

Helena: É ele, Afrodite. Eu tenho medo quando ele olha para o meu sonho pela janela. Ele não dorme.

Afrodite: Ele precisa dormir.

Helena: Mas a dor dele não deixa.

Afrodite: O remédio é a própria dor.

(Antônio toca a campainha da casa de Helena. Helena abre a porta. Os dois ficam em silêncio por minutos infinitos. Não se viam há mais de dez anos.)

Antônio: Estão querendo me matar. Posso entrar?

Helena: Por favor, entre.

Antônio: Eu sou informante... Da polícia. Eles livraram a minha cara há uns anos atrás em troca de informação. Me treinaram fortemente. Me tiraram do vício na porrada. Sofri. Mas agradeço cada segundo daquele sofrimento. Em três meses eu saí da Zumbilândia.

Helena: Então você estava realmente na Zumbilândia?

Antônio: É...

Helena: Do que você precisa? Dinheiro? Tenho pouca coisa na poupança e um carro velho. Ah, acho que tenho uma pulseira de ouro que ganhei de um ex. noivo, ele estava querendo me impressionar com jantares e estes mimos...

Antônio: Você! Eu quero você! Não me irrita com esse papo de ex. noivo!

Helena: Isso não é verdade, você não me quer. Nem nunca me quis. Você sabe disso. Só queria me querer, não passava disso. Você queria a ideia de mim, porque se sentia só. Eu inteirinha, assim, uma misteriosa substância que não podias dominar e conter, você não queria...

Antônio: Eu te quero tanto! Desde o primeiro dia. Eu sentia tanta alegria que me dava medo, me dava medo de não ter mais, de perder. Fale comigo, fale comigo Helena! Me diga alguma coisa!

Helena: Meu querido Antônio, eu não sei o que dizer. Não é raiva, nem ressentimento, nem rancor, é só um vazio.

Antônio: Fique com raiva de mim! Por favor grite e chore! Eu preciso sentir que você se importa, tem raiva, que ainda sente!

Helena: Tanto, tanto tempo que passou...

Antônio: Preciso ir, não quero colocar tua vida em risco. Eu não sei se saio vivo dessa história. (Antônio abre a porta da casa de Helena)

Helena: Você vai fugir? Por que não pede proteção à polícia?

Antônio: Um drogado como eu? Não valho muita coisa.

Helena: Você ainda está usando?

Antônio: Uma vez os caras me obrigaram a usar de novo, estavam desconfiados, mas eu estou driblando a coisa, a vontade maldita. Ando cheirando rapé. Helena! Helena! Helena! Como você consegue ficar a cada dia mais bonita, meu anjo? (Os dois se abraçam, Antônio se aproxima de Helena para beijá-la quando chegam três homens armados, ameaçam os dois e os levam em menos de dois minutos para dentro da mala de um carro. Antônio e Helena são amarrados num quarto dentro de uma casa abandonada. Entra um homem de máscara.)

 

Homem: Eu vou ser bem rápido, direto, tranquilo, ô X9. Se vocês colaborarem, ainda hoje nós soltamos vocês na mata e ainda orientamos os pombinhos a chegarem com segurança na estrada. Se não colaborarem, levam um teco na cabeça e vão passar a lua de mel no microondas. Para não sacanear vocês eu chamo o meu parça lá dentro e a gente atira nos dois ao mesmo tempo. Olha como eu sou bonzinho e romântico?

Antônio: O que vocês querem?

Homem: Informação. Sobre o comandante. Todo o itinerário dele e da família. Até o horário da escola das crianças e o horário daquela vagabunda ordinária da mulher dele na academia.

Antônio: Eu não tenho acesso ao comandante.

Homem: Dá o teu jeito, filho da puta! Desculpa, eu disse que ficaria calmo. Estou me esforçando, fazendo meditação.

Antônio: Eu preciso ir até lá, falar com o cara que me conhece, ganhar a confiança.

Homem: Feito. Ela vai com você, então. Os dois estarão na nossa mira. É melhor não enrolarem. Você tem muita sorte, dedo duro! Não tentem armar nada, é a vida do comandante ou é a vida de vocês. Escolham se vão dormir na caminha confortável ou no microondas. Vem logo! Presta atenção de novo! Vai ter gente minha por todo o lado, não tentem nenhuma gracinha.

 

(Helena e Antônio são deixados no Centro da Cidade. A pé, passam pela travessa da Natividade. Antônio entra na igreja.)

Helena: Antônio, vai fazer o que aí?

Antônio: Preciso me confessar.

Helena: Não acredito! Agora? Tem um monte de bandido querendo matar a gente!

Antônio: Shi!!! Pouco barulho! Não atenda o celular e não veja mensagens. Vá até a Capela do Santíssimo.

 

(Dois minutos depois, Antônio sai do confessionário.)

 

Antônio: Vem!

Helena: Já? Que confissão mais rápida.

Antônio: Anda! Anda! Vou te dar uma coisa, entrega para o mendigo, aquele cara que está tocando.

 

Helena: É o José!

 

Antônio: Olha no olho dele e diz: Deus seja louvado!

 

Helena: (Se aproxima e olha nos olhos de José) Deus seja louvado!

José: Amém!

Antonio: Continua andando. Me beija! (Antônio beija Helena ardentemente) Agora, entra aí.

Helena: Já? Fiquei sem fôlego. Que lugar é esse?

Antônio: Polícia Federal. Vem, Helena! Senta aí. Agora relaxa, tem cafezinho e água.

Helena: O que a gente faz agora?

Antônio: Nada. Deixa passar dez minutos. Wilson, arruma uma revista de fofoca dessas para a minha deusa Helena se distrair.

Helena: Sua deusa?

Antônio: Me desculpa por não ter a habilidade de poder expressar tudo o que queres ouvir. Mas eu sinto. Vem cá! Deixa-me beijar direito!

Helena: Tinha me esquecido que éramos um reator nuclear.

Antônio: Não tinha esquecido nada, sua desavergonhada!

Helena: E agora?

Antônio: Niterói.

Helena: Como assim, Niterói?

Antônio: Tem um carro me esperando na saída das barcas.

Helena: Teu telefone tá tocando.

Antônio: É ele. Três minutos. (Todos na polícia federal observam o telefonema)

ALÔ. CARA, TENHO MUITA COISA PRA TE PASSAR. CONSEGUI TODO O TRAJETO DAS CRIANÇAS. É ELE QUEM SEMPRE PEGA. A ESPOSA FICA EM CASA CUIDANDO DO ALMOÇO. NÓS ESTAMOS DESCENDO. NÃO! TÁ TUDO LIMPO! ENCONTRAMOS VOCÊS NA PORTA E AÍ VOCÊS LIBERAM A GENTE, NÃO É? TENHO UMA FOTO AQUI. VOU TE MANDAR TUDO PELO WHATSAPP. PODE DEIXAR. (Desliga)

Antônio: Filho da puta!

Helena: Vamos encontrar com esses caras de novo?

Antônio: Claro que não! Eles querem nos matar, mas são muito burros. Contamos com essa burrice. Não sabem raciocinar, só conhecem a violência. Eu tenho que ir. Nos falamos.

Helena: Como assim, nos falamos?

Antônio: Você fica aqui. Em segurança.

Helena: Eu vou com você.

Antônio: Não vai.

Helena: Quero ir até o fim. Com você.

Antônio (grita) Você fica!

Helena: Não tenha medo, eu vou estar bem do seu lado. (Helena segura na mão de Antônio e os dois correm em direção à saída do prédio da polícia federal)

 

 

Epílogo:

(Confusão no meio da rua. Homens armados perseguem Antônio e Helena. Tiros são ouvidos. Os transeuntes saem correndo.)

Antônio: Helena, corre, corre! Entra na barca! Corre!

Helena: Vem comigo, Antônio, para Niterói!

(Antônio está ferido, mas consegue correr ao lado de Helena. Os dois dão as mãos e quando estão quase chegando na barca ouve-se outro tiro que acerta Helena e ela cai no mar. Antônio mergulha para tentar salvá-la.)



 

 

 

 

 

 

 

 

(Helena acorda no hospital)


Helena: O campo do silêncio...

 

Antônio: Ei, bela adormecida, estava aqui esperando você abrir os olhos.

Helena: Desculpe, moço... O senhor pode me informar se eu morri?

Antônio: Confie em mim. Você só está acordando. Ficou muitos dias dormindo.

Helena: E muita coisa mudou neste tempo em que estive dormindo?

Antônio: Não no nosso mundo, Helena.

Helena: Você me conhece? De muito tempo?

Antônio: De toda a vida.

Helena: Eu estive na Grécia, no teatro. Vi uma ninfa nua e um coro de velhos mascarados. Vi a mais bela e mais livre de todas as mulheres: Afrodite. Depois eu ajudei a colocar uma menininha de olhos grandes e licorosos no vapor. O nome dela era Sulamita. Parecia tudo tão real...

Antônio: Sulamita? É o nome da minha mãe.

Helena: Sei que ela cresceu, que virou uma linda mulher, que era amada por um homem que lhe deu um filho, um filho muito querido e amado. Tão maternal, tinha sempre a bonequinha no colo...

Antônio: Sinto tanta saudade dela... Essa saudade doeu tanto, por tantos anos! Eu não conseguia deixar ela ir, tinha raiva, muita raiva aqui dentro!

Helena: Não sente mais tanta raiva assim?

Antônio: Ela me disse para eu não acreditar no que os outros diziam sobre o fim... “Estarei sempre ao pé de ti, podem dizer o que quiserem, que eu morri, que fui devorada pelos vermes, que sou apenas pó num caixão...” Eu achava que tudo se acabava... Mas senti a presença dela... Ela se sentou todos os dias naquela cadeira, enquanto você dormia e eu velava o teu sono... Eu não via, mas sentia o cheiro dela e ouvia o seu pensamento. Ela me disse que você acordaria em breve e que vocês duas se conheciam e tinham trocado confidências. Ela também pediu que eu te levasse para dentro da natureza selvagem.

(Antônio cheira um pozinho que coloca na palma da mão e começa a espirrar)

Helena: O que é isso?

Antônio: Meu vício. Quer? (Helena olha assustada) É rapé, sua bocó! Você sabe que eu te amo, não sabe?

Helena: Moço, eu não tenho a menor ideia de quem é o senhor.

Antônio: (Sorri) Eu sei. Confia em mim?

Helena: Bem, se o senhor estava aí este tempo todo velando o meu sono de dias... Acho que não tenho outra alternativa a não ser confiar no senhor.

Antônio: Então eu vou te levar para a natureza selvagem assim que os médicos te derem alta.

 

Na natureza selvagem, Helena e Antônio entram na água. Ela mergulha lá no fundo, seguindo o som de um piano e vozes melodiosas que dizem ao longe:

VOZES: A água tem uma memória, é como um gravador...

E então ela vê a pequena Sulamita, encontra também a ninfa ao lado de Afrodite e do corifeu. E todos entoam um coro mais alto:

VOZES: A água tem uma memória, é como um gravador... Tudo o que o Velho trovador diz é criado, não existe espaço nem tempo... a vida é sonho... menininha...

Helena: Moço, eu não tenho palavras que signifiquem muito agora, sobre nós... Mas eu me lembro que o senhor entrava na janela do meu sonho...

Antônio: Você gostava?

Helena: O meu coração ficava quente e me dava uma vontade de cantar! Moço, parece que estou diluindo com toda esta febre que sinto agora e que não passa, mesmo nessa água gelada...

Antônio: Não roube a minha febre, moça. Eu também não tenho mais palavras que signifiquem.

Helena: Vai chover. O rio está agitado. A água é tão boa, não tem gravidade... que é uma lei daqui...

Antônio: Do que você precisa, Helena?

Helena: Eu só preciso que o moço exista. Do que você precisa, Antônio?

Antônio: Eu também só preciso que a moça exista.

E COMEÇA O DILÚVIO QUE SE IMPÕE EM MOLTO VIVACE-PRESTO.

FIM

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