Descansa, vou lavar teus pés agora.

In ipso vita erat et vita erat lux hominum. (João 1:4)

Percorrendo o Jardim sem limites, éramos os amos de toda a vida e de todo o espaço. O tempo existia para o nosso deleite. Vivíamos deste amor que dimana e não contém.

Havia música lá. Era a voz do Maestro que se ouvia. Enquanto cantava entre os harmônicos do saltério e da harpa, Ele dizia de todo o bem que ia criando. E serenava na sua luz de fios de ouro. Suas mãos iam orvalhando as formas e as cores do Jardim que nasciam porque era tão bom! 

Teceu liberdade no espírito do seu povo, a vontade, o sonho. Porque nos amava ainda mais do que tudo o que amava.

Quando bateu à porta do Jardim o príncipe do mundo, eu abri! Era só uma criança, como tu, meu amor! E aquele vento quente que não vinha Dele tramou a doença. Teus olhos não tinham mais brilho, minha boca já não deitava o teu mel.

Um eclipse encobriu a abundante e fecunda claridade. Arrastei em tua direção meu pobre corpo que ontem voava sem asas. Uma avalanche de lama e lodo nos tomou e nos despiu, para que víssemos a força do mal em nós. E como é desoladora a força do mal em nós, irmão!

O altar sangrava no antigo mundo. O mundo de deuses que desciam de suas máquinas para sorverem do luxo e da luxúria. Deuses simulacros, anímicos deuses sem alma que só viviam das migalhas do altar naquele mundo revirado.

No perdido oriente os pés do patriarca foram guiados por Javé, o único Maestro. Abraão esperava por seu Deus velado pelo príncipe do mundo. Olhava para o alto e via ainda o eclipse encobrindo a claridade. Sabia que era preciso vencer o deserto. E na ânsia de ter Seu Pai de volta, foi imolando tudo o que vivia, até mesmo o pequeno Isaque, aquele que mais amava, confiando no mistério da luz que sabia ser sua e de todos os outros.

Na Tenda do Encontro seguro tua mão e quero crer contigo! Procuramos ardentemente a face de Javé, a árvore com raízes para o alto. Porque Ele nos deu de tudo, até este amor que dói porque é de verdade.

Com a mesma fome do patriarca, imolamos inocentes e espalhamos o seu sangue pelo altar. Mortos pelas horas do tempo que conta, não sabemos onde foi parar o rosto santo do Pai.

Um dia a luz do mundo nasceu para nós, a luz que não foi criada como o homem e a mulher, mas que era a própria voz do Maestro. O efeito magnífico do seu canto de amor, que origina tudo o que respira, pulsa e pensa: ‘Eu sou!’

A luz encarnou no corpo da menina, a menina vestida de sol que deitou sua cabeça nos pés da cruz. E fechou os olhos para tudo ouvir e aprender do Pai, caminhando sem parar com aqueles pés delicados pelo inóspito e árido deserto. Foi até o fim na jornada e nenhuma vez considerou entrever a cor do medo.

O divino fruto encarnado desceu do trono celeste para sentir em si o mal que habitava suas criaturas. A luz, beatus verbum, palavra acobertada pelo medo de amar, porque o amor não aceita nada menos que a verdade, só existe inteiro.

O Cristo, ungido filho de Javé, não usava máscaras, tampouco conspirava ou maquinava sortilégios em troca de ouro e sangue. Veio à luz por meio do corpo da mulher, como todos os outros, para irradiar o que estava incógnito no mundo, um valor que não serve de atavio ou grinalda para a nossa abatida carne.

Nasceu para que a verdadeira fome fosse extinta e finalmente cessássemos de mendigar e roubar lampejos de luz alheia. Aqui e ali. Para nos precipitarmos, entre deslumbrados e assombrados, no sorvedouro da perdição. Luz que nos distende e invade o nosso sangue em sua pujança de onda, salgada e voraz.

Que alegria, segura minha mão e evanesce comigo, dilui comigo, meu amor! Pare de apanhar os pedaços pútridos de medo e egoísmo que existem por aí e vem comigo porque eu também não sei onde isso tudo vai parar e já não posso evitar o salto! 

Vasculhe aí por dentro, na verdade que existe para que vivas como um rio sem barragens, sem grilhões. Conduz a vontade da tua substância encantadora que eu pude distinguir, como um farol.

Lá fora tudo o que existe é simulacro, deuses ex machina, Medeias que fogem para o exílio em suas carruagens voadoras. Aí dentro de ti está a luz do mundo. Ele foi levantado da terra e pregado na cruz, mas está agora mesmo dentro do teu coração, só em ti Ele está. Deixa o príncipe do mundo bater à vontade, uma hora ele cansa. 

Do seu interior manarão rios de água viva. O verbo luz e o Pai farão no teu coração uma morada. E por favor não se assuste se eu lhe disser agora que só quero lavar os teus pés e te amar com o mesmo amor que nos deu a luz do mundo, mesmo que eu não saiba bem por onde começar e nem conheça uma receita certeira. Vem ser tenra fronde comigo, dançando na árvore da vida, cujas raízes crescem para o alto!



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