A Tentação de Mariana
Nos dias de levar a roupa lavada
e engomada, abria os olhos antes do sol nascer. Quase não dormia, virava e
revirava na cama esperando inquieta pelo passeio na cidade. A botina e o lenço espesso
sobre a cabeça não eram suficientes para afugentar o frio e o vento marítimos.
Ia assim mesmo, sabendo que os dez quilômetros a pé com a trouxa na cabeça e o
compasso convulso da caminhada lhe esquentariam o corpo.
Transfigurava-se em pura alegria
quando avistava o farol ornado pelos primeiros raios de claridade. Sempre se
dava de presente o tempo de subir a escadinha estreita do antigo farol para
observar de perto o furor das ondas, o que lhe trazia um frêmito de morte. Era
a prece do dia, o ânimo para enfrentar o pesado labor, os temores, as lacunas
da existência.
Invadia o bosque de lavanda que
se perdia no horizonte como um colossal tapete mágico. Misturavam-se à lavanda
os odores das ervas de cheiro: alecrim, rosmaninho, tomilho, manjericão,
manjerona, hortelã. Sabia distinguir todos os aromas. Colhia do mato as
encomendas da mãe e da senhora, arranjando tudo nos saquinhos de chita.
Os raios de sol lhe afagavam o
rosto juvenil e sardento, uns olhos cor de mel, uma pele muito alva. Tirava o
lenço escuro e pesado, a casaca e a capa. Abandonava os braços nus sobre a
relva. Ouvia ao longe um piano imaginário.
Gostava do vai e vem dos
vendedores de rua, das vitrines de vestidos e trajes de gala, do colorido dos
doces, do esplendor das igrejas, dos carros que agora se moviam sem os cavalos!
Volta e meia estacava, arredia, querendo correr para os braços da mãe: -
Mãezinha, na cidade as coisas escapam de Deus, é como se tivessem vida
própria!
Mariana conservava o seu temor
pela cidade. Temor que adorava sentir. Era como quando estava no alto do farol
na iminência de cair sobre o escarpado das rochas, sobre a exaltação das ondas.
Seu corpo ganhava uma força e um sentido que ela ainda não podia compreender.
A primeira da lista de freguesas
era Ana Ribas, a senhora que jamais sorria. Dona Ana que andava sempre de
preto, mas tinha marido vivo, pegava a trouxa e levava para os aposentos. Então
sumia lá por dentro se esquecendo de Mariana que passava o tempo perdido
olhando fixamente para a estátua da Virgem Maria sobre o altar de peroba
entalhado. Uma virgem muito triste e lacrimosa, segurando nos braços o filho
morto.
Linda virgem e mãe, seu manto
azul com atilhos dourados ganhava movimento na imaginação de Mariana. De sua
pele de cera vertiam lágrimas brilhantes. Os cenhos franzidos de tanta tristeza
e uma boca magnificamente fresca.
- Deixaste a roupa sobre a erva,
menina?
Mariana se assustou com a entrada desabrida da
dona, já que ainda estava imersa no olhar licoroso da imaculada.
- Deixei sim senhora, toda a
manhã de ontem. Deixei quarando porque o sol estava muito bom.
- Ficaram mesmo clarinhas!
Parece que não foram mãos humanas a trabalhar, que fizeste um feitiço. Deixa
ver tuas mãos... Perfeitas, sem um calo, sem uma mancha. Isso é feitiço! Ou
então é tua mãe que lava...
Mariana acendeu um sorrisinho
manhoso só no canto esquerdo da boca:
- Gosto de bater nas roupas com
força, só nas mais pesadas! As delicadas e claras eu esfrego, esfrego, coloco
de molho no anil, depois deixo quarando. Quando a roupa está muito encardida é
preciso ferver! E é só isso que eu faço, dona Ana.
Finalizou o assunto com mais um
breve sorriso de contentamento.
Dona Ana Ribas notava que Mariana descrevia o
absorvente ofício como se recitasse um poema ou tocasse o piano. E pegava vez
por outra nas tranças da moça, quase com delicadeza. enquanto bebiam o chá: -
Quem diria que aquele ratinho pelado que quase não vingou se tornaria essa
admirável rapariga! E alva! Não sabes a sorte que tens de não ter nascido
trigueira como tuas irmãs!
Depois de tagarelar por quase
toda a manhã, Ana Ribas enfim consentiu que a moça fosse embora sem lhe
oferecer nem o almoço nem a passagem do comboio.
Mariana seguiu para a igreja. Mesmo cansada e com
fome esperou a hora da missa. Fechou os olhos meditando com Deus. Pediu pela
alma dos mortos, pela saúde da mãe, pela orientação dos irmãos. E olhou no
fundo dos olhos da Virgem sobre o altar principal.
Quando abriu os olhos reconheceu
logo as pernas ajoelhadas ao lado das suas. Aquelas pernas pertenciam ao menino
magro de sorriso ladino filho da herdeira do hotel mais refinado do lugar.
Dimas farejava a presença de Mariana na cidade. Eram amigos desde sempre.
- Já estavas voltando para casa
e nem fostes me visitar.
- Tua mãe não gosta de mim...
- O que é que isso importa? Eu
gosto, por mim e por ela. Quer andar por aí?
Mariana e Dimas se demoravam
pela cidade. Corriam lojas, parques e jardins para enfim serenarem no cemitério
abandonado do promontório. Gostavam de sentir que sobre o pontal saliente
invadiam o habitat das sereias, dos navios fantasmas, dos gigantes e demônios
marinhos.
- Com fome?
- Uma fome danada!
Dimas abriu um alforje já bem
surrado que usava a tiracolo sempre que saía no encalço da amiga. Ali cabia de
tudo: pão, leite, geleia, frutas, paté de foie gras, vinho, queijo, docinhos
variados.
- Pegastes comida para mim de
novo? Roubaste da dispensa de tua mãe que eu sei!
- Roubei e sempre vou roubar.
Sei que dona Ana te deixa com fome e faço o que tiver que ser feito para ver
teu rosto lindo sempre corado, para que teu sorriso se ilumine a cada minuto.
Absolutamente contentada.
- Dimas...
- Não diz nada! Apenas coma este
morango aqui! E colocava um morango vermelho com a haste verde dentro da boca
da senhorita que mastigava rápido querendo falar:
- Como sabes que eu gosto de
comer a haste?
- Observando você! Teus gestos,
teu caminhar, o desenho de tuas palavras e a mágica do teu sorriso. Isso quando
estou com sorte!
- Sabes que vou para o convento.
- Não queres ir. Isso é coisa
daquele padre.
- Sim. Padre Gregório me
incentiva. Ele vai falar com as freiras. Em breve serei noviça.
- Não digas mais nada que assim
partes o meu coração.
Mariana se aproximou subitamente
do rosto do amigo. Fez-se um sossego de pássaros cantando ao longe. Dimas olhou
profundo nos olhos da moça que amava desde criança esperando que ela também
proferisse o seu amor. O ar lhe escapava.
- Começa a escurecer Dimas.
Vou-me embora.
- Não! Não podes... Não podes ir
sozinha.
- Não te preocupes mais comigo.
E com a ponta dos finos dedos
Mariana traçou sua própria cartografia da fisionomia do amigo na esperança de
retê-la na memória e utilizá-la sempre que preciso, como uma ferramenta
concreta:
-O
oceano vai morar para sempre no fundo do azul destes teus olhos.
- Quando voltarei a te ver?
- Quando Deus quiser.
E colocou a capa, se afastando
depressa numa marcha larga e irrequieta, alterando junto com o tempo que trazia
súbito vento e tempestade.
Vinte dias se passaram. Não
havia mais sinal do vendaval nem notícias de Dimas. Bateram na casa de dona
Rosa mais cedo que o combinado. À porta, o pároco, um cocheiro e seus
salamaleques, duas monjas do convento das Carmelitas. Mariana estava pronta
para deixar a casa dos pais para sempre.
Dona Rosa não era de deitar
choro fora, mas também não podia disfarçar seu desapontamento com a decisão da
menina.
- Não me conformo com isso!
Terminar tua vida trancada num convento. Fiz de tudo para te dar educação, para
não teres que viver para sempre como uma lavadeira! Mariana leu o Tesouro de
Meninas, padre Gregório! Preparada para fazer bom casamento ou ao menos ser uma
boa preceptora!
O pároco olhava para o pé, o
cocheiro fazia disfarçadas momices com as sobrancelhas, as freiras contemplavam
o horizonte e Mariana mantinha uma quietude inabalável que bulia por dentro da
mãe como uma dor sem remédio:
- Dá-me a tua benção agora, pois
sem tua benção eu não sou nada. Dona Rosa, minha mãe, perceba o quanto é bom,
eu por fim entendi o amor de Cristo e recebi o seu chamado. A senhora sabe o
quanto eu era inquieta, buscava a beleza, os cheiros, as cores em tudo. A
senhora ralhava comigo, pensava que eu tinha um parafuso a menos. Agora com
Deus, eu posso ver o coração das coisas!
Dona Rosa que não era de chorar,
desprendeu um mar de lágrimas. As mais salgadas e sentidas que jamais vertera
em toda a vida. Enfim, abençoou a filha e se fechou num silêncio resignado.
Encontrou forças no trabalho. Com sol ou chuva levava os filhos pequenos para o
rio e lá cumpria seu labor diário: esfregar, quarar, bater. De domingo a
domingo.
Mariana aprendeu a ficar em
silêncio. Participava com bom ânimo das orações diárias, do estudo bíblico, das
santas missas. A catequização das crianças era sua maior alegria. Acordava
antes do sol, encontrava as outras companheiras. A vida em comunidade era boa,
animada. As noviças dividiam um grande quarto cheio de camas.
Três meses se passaram no novo
lar com as irmãs carmelitas. O inverno transformou a paisagem em nevoeiro, mas
era possível avistar a ponta do velho farol quando ia limpar as janelas de
vidro do andar de cima do convento. Sentiu saudades de dona Rosa, de seu pai,
de seus irmãos. Sentiu saudades do menino Dimas, daqueles olhos que guardavam o
mar. Sentiu saudades do farol perdido, do inebriante perfume de maresia.
-Vem Mariana, padre Gregório
mandou chamar na sacristia!
- Acorda Mariana, padre Gregório
quer ver-te antes da missa!
- Mariana hoje fica até mais
tarde com as crianças de padre Gregório!
Estreitavam-se mais e mais os laços entre a noviça
e o pároco da igreja de Nossa Senhora do Carmo. E Mariana já não desejava o
farol, o mar, o vento nos cabelos.
- Padre Gregório pediu para
ficar até mais tarde cuidando dos preparativos da semana da Páscoa.
- O padre me chamou mais cedo
hoje, madre.
- Vou confessar depois da
catequese dos meninos lá na sacristia.
- A irmã pode ir sem mim. Vou
meditar mais um pouco na capela do santíssimo.
Na despedida da catequese das
crianças, o mesmo ritual: a noviça beijava a mão do padre. Um dia, não se
satisfazendo com a cerimônia do gesto, o pároco pegou com as duas mãos o rosto
da mocinha e beijou seus lábios trêmulos. Um beijo na boca!
Duas semanas foram suficientes
para que o sacerdote passasse a reinar sobre o corpo e a alma da arrebatada
freirinha que estava tão enfeitiçada de amor que já não via pecado quando ele a
tomava para si em seu dormitório. O venerado padre a quem ela devia respeito
era ainda o homem a quem ela se entregava em êxtase.
Jesus Cristo, o seu redentor,
não era mais o esposo amado daquela delicada alma, se tornando um pretexto
pueril para aquela paixão ardente e desordenada:
- Não eram assim o amor dos
animais e a fúria das marés? E assim mesmo não eram obra de Deus?
Numa gelada madrugada procurou
pelo padre em sonhos gritando o seu nome. Despertou sob o olhar das religiosas.
E então apareceram os indícios
da gravidez, quase ao mesmo tempo em que cessaram os chamados do padre. A vida
de Mariana agora era dentro da clausura. Não abria mais as janelas, quase não
comia, esquecia-se de tomar banho. Rezava, a cada dia com redobrado fervor.
No banquinho de madeira o copo
d’água e a santinha de barro que ganhou da mãe no dia da primeira comunhão.
Santa Terezinha do Menino Jesus segurando um buquê de rosas.
Sorriu aérea, lembrança boa do
menino que não a deixava chorar nem sentir fome. Concentrou naqueles olhos. Olhos
de oceano profundo, domínio de venturosos afogados, liquefeitos pelas
profundezas salgadas, onde ela deveria morar para sempre.
A madre superiora e a outra
entraram caladas com a infusão numa xícara alta. Era para tomar tudo, gota a
gota. Aquilo amargava a boca, tanto, tanto que nos últimos goles precisaram
segurar com força o maxilar da pecadora para que não desprezasse a bebida com
seus engulhos. Santa Terezinha olhava para a cena.
Dos olhos de Mariana correram um
quieto pranto. Sabia que sua vida era um sopro agora e que, portanto, não havia
tempo para ressentimento e dor. Tudo nela se transformou numa vontade de amar o
absoluto Eu Sou.
A missa estava cheia. Ia ter
procissão em homenagem à padroeira. Mariana apareceu com a face descorada na
celebração da eucaristia e recebeu das mãos de um assombrado padre Gregório a
hóstia sagrada. Ainda estava com o corpo quente de Jesus em sua boca quando se
precipitou para beijar a boca do padre com toda a ternura que tinha.
Fez-se um silêncio, depois um
suspiro quente e coletivo da audiência. Mariana articulou baixinho no ouvido do
religioso o cântico que entoava aos seus ouvidos nas noites de luxúria: - “Levou-me
à sala do banquete e o seu estandarte sobre mim era o amor. Sustentai-me com
passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor.”
De sua boca jorrava um sangue consistente,
quase parado. Uns já segredavam que o sangue também brotava do meio de suas
pernas. Vozes acanhadas e destoantes se puseram a ensaiar baixinho o stabat
mater com o apoio majestoso do órgão.
Mariana foi carregada outra vez
para a clausura, em segundos o miserável catre era só sangue. Os olhos
reviravam, assim como os dedos das mãos e dos pés, a febre queimava
transtornando ainda mais os seus sentidos que se exaltavam em alarmantes
clamores. A morte dava o seu espetáculo.
Uma luz que ia e vinha adentrou
a janelinha do triste quarto e Dimas pôde ver Mariana indo embora de seu corpo.
Fechou seus olhos e como um cego tateou o contorno do rosto daquela face tão
descorada e fria, implorando em pensamentos que Deus fosse justo e o levasse
com ela.
A voz de sua delicada dama ainda
era fresca e cristalina, viajando, doce, até os ouvidos do menino. A própria
Mariana agora já era só o seu som:
- O amor deste mundo é
preguiçoso e não possui asas para erguê-lo até o infinito... O sol entrava pela
fresta da janela de manhã e tudo estava lá, toda a força, a alegria, a
esperança estava no sol que invadia a manhã fria pela janela... Sabia que Deus
estava lá, ninguém precisou me dizer... Lá do farol velho o menino ouvirá
melhor a voz de Deus... Daquele coração puro brotarão flores de cores nunca
vistas e eu cantarei para ele sempre que houver dor... Eu cantarei a canção
mágica e não haverá mais nenhum temor.
Num admirável esforço, a
agonizante proferiu um nome:
- Dimas, tem muito o que
fazer... Leve o alforge com tudo o que puder... Atravesse os mares... Não deixa
ficar lá a fome, nem o sofrimento... Limpa as feridas Dimas... Cuida... Abre as
portas do mundo para Deus entrar...
E sorriu seu último sorriso,
imergindo na vastidão azul daqueles olhos que havia conservado para si.
6 Comments
Não conhecesse eu a autora, diria que acabei de ler um belo conto escrito no início do século XX...Bem estruturado,com uma história comum mas com uma narrativa ímpar!
ResponderExcluirAi o mar... O oceano... Sempre presente nas mentes de portugueses e brasileiros. Gostei muito de ler o teu conto querida Carol. Muito bom! ;)
ResponderExcluirque bonito, que triste, que emocionante! Viajei pra bem longe...
ResponderExcluirEm Mariana, primeiro, uma candura e disponibilidade para a vida, a fusão com a natureza, a linha de encontro da terra com o mar, o viço e frescor dos inícios.
ResponderExcluirO prazer intenso na realização de tarefas singelas, quase básicas, transformadas com desvelo meticuloso em obras de arte.
Depois, o insensato menosprezo da oferta da felicidade desde sempre próxima e possível com Dimas, ainda em nome da mesma busca incansável do absoluto.
Mais tarde, a inexorável queda de um anjo às mãos de Gregório, irrompendo brutalmente por entre a tautologia dos rituais apaziguadores de todas as angústias.
A inevitabilidade primeva do instinto original transformado em subversão intolerável pela ordem imperiosa das instituições petrificadas. O frémito total, o preço a pagar por toda a desmesura, pela sensualidade imanente de uma Teresa de Ávila, a fusão incondicional tentada só pelos mais puros, a entrega que traz implícita a própria destruição.
E contudo, o volte-face da lucidez final na passagem do testemunho a Dimas, as claras e concretas determinações redentoras de quem sai do palco da vida com dignidade, entregues àquele olhar profundo guardado desde sempre no mais íntimo de si...
...Podia ser uma peça de teatro, um filme...
Experimentem este desafio: Primeiro, leiam o conto a sós, em voz alta, várias vezes. Depois, de novo para amigos, família, alunos.
Melhor ainda: Ana Carolina é atriz e declamadora.
Convidem-na para uma leitura. Ela saberá como ninguém fazer de "A tentação de Mariana" uma verdadeira representação...
Muita sensibilidade. Grande contista! Fiquei curioso com algumas palavras lusitanas; remeteram-me, não sei por quê, a alguma aldeia marítima portuguesa, sei lá! Parabéns.
ResponderExcluirAna Carolina Paiva, você descobriu a máquina do tempo e sabe viajar com delicadeza incomum. Parabéns e continue nos levando com você!
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