O Regresso do Capitão

Da porta para fora o tempo estava bom. Firmou. A chuva que caíra por três dias sem trégua agravara a gota, a artrose, a artrite reumatóide, assim como a otite, a sinusite, a bronquite.

Naquilo que sua vista fitava havia mesmo um brilho incomum: o verde na montanha, o branco nas pipocas saltando na parte interna da carrocinha; o negro no asfalto e no rabo do gato por entre as linhas horizontais acobreadas do portão eletrônico de metalon do vizinho enjoado; até o azul claro no céu e escuro na porta da birosca inquietavam a vista.

No caminho até a praça, sob um assente aconchego solar quase não sentia dor e caminhava sem precisão de parar a cada três passos para tossir ou respirar melhor.

Avistou o banco vazio, logo desanimou: levantar daquele banco seria tão arriscado quanto mortificante. E se tivesse uma zonzeira? Lá estava o enxame de rostos estranhos a lhe oferecer o braço e tirá-lo da passagem como uma coisa despencada congestionando a via pública. Pois sim!

De pé, encostou-se à figueira. Com os olhos fechados, esquadrinhava o esplendor daquela manhã. As narinas dilataram. Sorveu do jasmineiro, das jaqueiras, dos corpos suados que passavam, de toda a atmosfera candente da praça.

– “Manhã, tão bonita, manhã...” Expulsava a canção num solfejo baixinho e destoante. Cuidava pra não perder a voz. Continuamente projetava um ruído qualquer, embora o som abatido e agudo daquela voz decrépita não fosse capaz de ocultar entre a pausa dos silêncios o rigor da mocidade: de jamais confiar, de não se entregar, de só se valer.

Nesse dia de calor a alma era invadida por aquela estrangeira alegria. Justo agora que já não se importava com a solidão, o silêncio, os fantasmas da casa, vivendo com ajustada fleuma a expectativa da chegada da morte, num abandonar-se exemplar, sem alardes.

Tudo havia sido esquematizado com a mortuária de Zé Reinaldo, o sobrinho de Anchieta. Pulando a etapa do velório e do funeral, o traslado das cinzas até o Rio Carangola em Tombos ficaria a cargo do filho de Elvira, a dona da padaria. Já tinha um combinado por procuração e tudo com a mãe do rapaz, que ainda era menor de idade, mas tinha uma queda pela morte e realizaria o serviço com todo gosto. E agora isso. Essa vontade de viver!

- Será que encontro o paradeiro dela? Articulou o mais alto que pôde, puxando o ar com força, tentando se apoiar na figueira com as costas para não despencar no chão. Era oxigênio demais para um corpo tão combalido. Logo a vista escureceu trazendo um aroma de maresia. Desabou sob a terra áspera.

- À toa, Ifigênia fitava o mar. Longas horas... Abandonada sob o sol. Namoro com o mar. Possuída pela brisa marinha, todinha. À toa... Era feliz perto de toda aquela água...

Falou muito arrastado, querendo ar. Olhava fixo na direção da moça que apanhava sua cabeça alva entre as mãos. Ao seu redor, outros desconhecidos:

- Esse é o capitão?

- Não tinha morrido?

- Parece que se esqueceram dele...

-Melhor mandar pro hospital. Ajuda aqui a levantar!

- Não! Pensou que gritava, mas a voz era um fio.

- Preciso encontrar uma moça. Ifigênia. Disse que me esperava. Que quando voltasse, procurasse por ela. Nunca voltei... A guerra é uma coisa muito feia. Fui-me embora em novembro de 1944. A gente usava o jornal socado dentro do coturno, dava frio nos ossos. Era eu e Vicente. Companheiro bom! Usava um perfume adamado, presente de Rosa, a prometida. Dois soldados rasos. Da infantaria, vejam bem! Deixei Ifigênia com o mar que ela tanto adorava. Ifigênia me deu um bentinho milagroso feito pela mãe dela que era muito religiosa, metida a beata. Deu-me também o retrato dela de maiô. Fui-me embora pra nunca mais voltar...

No meio do cardume de curiosos uma menina muito magrinha de vestido vermelho ralhou:

- Fugiu de casa de novo, danado?! E sem comer! Vem! Mandaram te buscar.

- Conheço você! É a menina que roubou minha baioneta enquanto eu cochilava. Estou definitivamente à mercê do inimigo agora. Percebem a gravidade da coisa?

- Dá aqui tua mão. Ifigênia mandou te buscar.

- Quem é Ifigênia?

A menina piscou o olho, malandrinha: - Ifigênia é uma dama que tem poderes extraordinários. Com suas mãos de fada ela cura as pessoas doentes do corpo e da alma. Vem!

O capitão foi andando até o mar de braço dado com a menina de vestido vermelho que era só cuidados e doçuras com ele.

- Tá aqui o fujão, vovó. Agora eu vou nadar.

- Hoje pensei que o senhor não voltava mais! É só o tempo estiar que se embrenha no meio da multidão. E do banho de sol? Se esqueceu foi?

Ifigênia era uma senhora magra como a neta Clarinha, tinha os cabelos prateados quase na altura dos ombros, linhas delicadas e olhos verdes grandes, agateados, brilhantes. Era bonita. O capitão olhava perplexo:

-Ifigênia? Você me esperou mesmo. Viu que trouxe de volta o seu retrato de maiô? O bentinho não sei onde foi parar...

-Não tem importância não. Lembrou de mim? Mesmo assim tão velha?

- A senhora ainda é a mais formosa de todas.

- Dá tua mão. Ih, tem que cortar essas unhas!

Ifigênia olhou bem fundo nos olhos pequenos e opacos do capitão. Segurou sua cabeça entre as mãos, passou os dedos delicadamente sobre o seu rosto, tracejando o contorno das sobrancelhas, o escarpado do nariz aquilino, a boca ainda bem feita que súbito beijou com afobação para logo repetir o gesto com toda a delicadeza:

– Amanhã, vamos a Paquetá! Disse Ifigênia num rompante antes de se virar para admirar outra vez o mar. Ainda sem disposição para sorrir, o velho combatente encheu o pulmão de ar num suspiro serenado de quem finalmente chegara a uma paragem segura e acolhedora.



4 Comments

  1. O passado vem à tona, mais que nunca: assim é!
    Quanta riqueza, nos personagens e cenários...partindo das Gerais para a baia carioca. Imagino este texto,transformado em peça teatral...
    Mais uma joia!

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  2. Como é bom, depois de tanto tempo de ausência, Ana Carolina deixar a gente pegar de novo uma carona discreta no seu caleidoscópio mágico!
    Aí somos levados por sua mão sensível para os mundos cativantes que só ela consegue entrever, tão ricos de humanidade e sentimentos redentores, povoados por seres que sabem se integrar no grande arco da vida...

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  3. Uma graça! "nenhum amor é deste mundo" podia ser a moral da história.

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