Notícias daqui para o homem que usava um chapéu com asas
Uma
coisa muito certa na vida é a morte. Mas será que a morte sozinha dá conta de
todo o problema da dor? Pensemos um pouco: se nós não fôssemos capazes de amar a
morte teria todo esse poder? Então a dor vem do amar e não do morrer. Sendo
assim, amar é péssimo e morrer não é tão ruim assim? Ora, pensemos um pouco
mais: para não sentir dor teríamos que renunciar a todo o amor e eu não sei
vocês, mas eu acharia isso uma grande lástima, seríamos só um perecível frasco
vazio.
Eu
tive um amigo que por sinal era meu pai. Um dia ele desapareceu do mapa,
simplesmente evanesceu numa bruma exótica, plúmbea, daquelas que ocorrem nos
bosques temperados, morada de lobos uivantes e corvos agourentos; acho que
vocês me entendem, muita gente boa já passou por isso.
De
repente aquela pessoa cheia de encantos e calor se transforma, do nada, numa
dor lancinante. Mas aí vem a beleza da coisa, é como um filme-trem que emperra para
sempre numa estação, mas que sempre pode voltar para trás. E quanto mais volta
para trás, fica mais vívido e real na memória da gente e o amor estranhamente continua
a escorrer num volume cada vez maior. Então seria a morte somente um filme-trem
emperrado?
Entra
junho e o céu fica mais nítido no Rio de Janeiro, o clima ameniza e eu fico com
vontade de sair, encontrar o meu pai em algum boteco do Largo do Machado para sorver com ele do seu adorado cafezinho melado e comemorar seu aniversário no
dia 12 de junho.
Num
dia 12 de junho o filme-trem do Carlos começou a andar e quando eu penso nesta
ideia do nascimento do meu pai abro aquele sorrisinho de contentamento:
contentamento de ter tido um pai, de ter podido nascer porque ele colaborou muito
nisso, de ter podido sabê-lo um pouquinho, flanar com ele, chorar também; aquela
voz que está intacta e decalcada em mim, mas que eu jamais poderei comprovar a
ninguém como era, a perna cruzada na rede devorando livros muito velhos, às
vezes encostava as mãos no dedão do pé, outras vezes ficava mexendo naquele
cabelo encorpado, bagunçadão... Adorava manteiga, como eu adoro, e ficava
passando a bolacha direto na manteiga e sorvendo sempre o cafezinho melado.
Não!
Ele não era nada perfeito, tinha um monte de defeitos, mas era uma pessoa tão
genuína que dava gosto de ficar perto. Se eu prestasse muita atenção, num
relance, percebia que ele estava usando aquele adorno de cabeça alado, como os
dos deuses nórdicos. Seu espírito extrapolava pelo corpo e dava vontade de
ficar ali perto daquela criatura que não sei como nem porque transmutava a
realidade em algo menos pesado, mais iluminado e vívido. Era como chegar na
quadra do oceano e colocar os pés na areia. Só podia ser o chapeuzinho alado!
Como
ele tentou no terceiro round, na prorrogação, bem quando o “bicho” já tinha se
anunciado. (Carlos chamava seu câncer na próstata de “bicho” e não dava a
mínima para a doença, nem mesmo quando suas pernas de andarilho já não o
obedeciam). Ele tentou, tentou e tentou, sem descanso, nada o parava. Se não
dava para correr, agarrar, subir e descer, puxar, ele movia o que dava, nem que
fosse o dedinho do pé; ele nunca parava, queria acertar com cada um dos filhos,
nos dar um lastro, nos encaminhar; por isso sei o quanto se agarrou às paredes
da vida, não por amor-próprio, mas por cada um de seus rebentos.
Sempre
falo no cafezinho melado, mas é só porque o cafezinho era o seu elmo, o
cafezinho cortava a sua vontade de fumar e beber, e eu gostava de ver aquele
velho cruzado lutando, dia e noite, noite e dia, mesmo quando meus hormônios de
adolescente estavam à flor da pele e muitas vezes ficava furiosa com ele,
porque aquelas vacas eram sempre magras e tudo em nosso lar era tumultuado e sem
direção.
-Papai,
você não desistiu da gente! Você não desistiu de você!
E
agora, passados mais de vinte anos desta ausência, eu continuo amando o velho
cruzado e seu nome não para de ser enunciado por mim, seu nome está na lista
dos mais comentados no meu repertório de nomes. Como isto é possível? Amar
tanto alguém que evanesceu, que não tem mais contornos, sombra, cheiro, calor e
som?
Posso
atestar, mesmo sem provas “científicas,” e mesmo sendo desta natureza perecível
e débil, que este amor devotado, arraigado, inexaurível e eterno não vem deste
mundo daqui não! Ah, mas não vem mesmo! É coisa sobrenatural, coisa das
Alturas, que não vemos com estes olhos; é como quando todas as embarcações
marítimas desaparecem no horizonte: desde um barquinho de papel até uma fragata.
(É claro que eu não sei o nome do maior navio do mundo, aquele que seria quase
impossível desaparecer no horizonte, mas que mesmo assim desaparece; se alguém
souber sem dar um google, por favor me diga, mas não tem graça se der um
google).
Oh,
papai, mas eu fiquei de dar notícias daqui e sendo bem franca contigo,
cumprindo a minha obrigação de filha amorosa, eu devo dizer sem titubear: isto
aqui está uma merda muito pior, papai! Sabe como é? Imagine um anfiteatro com
cheiro de enxofre, sangue, excrementos, carne humana queimada, um jogral
patético onde marionetes realizam uma pantomima assustadora e a linguagem que
domina é a dos sofistas, um composto alucinante de mentira descarada com propaganda
dissimulada.
Papai,
a realidade foi dopada e colocada dentro de um velho baú, mas não adianta, ela
escapa! Vivemos num teatro, mas sabe como é que é, o teatro não pode esconder a
lei da gravidade, o passeio dos microrganismos na corrente sanguínea, a
inflamação, a revolta das células, a força das águas e de todos os outros
elementos.
-Carlos,
não fique triste por mim, ainda vejo almas por aqui, estou indo bem! Mas
preciso te contar um segredo: sempre que conheço uma alma boa e me apresento, discorro
sobre meus caminhos passados: como tudo foi, e confesso meus sonhos: como tudo
há de ser, lamento que falte algo que eu não tenho para dar a conhecer a este
novo amigo, que desapareceu algo muito valioso que eu tinha: você.
E
quando estou com aquela melancoliazinha tão minha, tão sentida, tão elementar,
imagino que ainda é possível ouvir a sua voz do outro lado da porta
entreaberta; é um presente de Deus que às vezes eu ganho: ouvir a sua voz no
burburinho alucinante do mundo, aquela voz tão nítida em minha mente e que
também é impossível de expressar.
PS.:
Eu não estou triste, mas graças ao bom Deus nunca deixei de sentir a sua falta;
eu vou rebobinar este filme-trem o tempo todo, até o dia que verei o teu rosto
que ficou oculto para mim na cerração que separa agora o meu mundo do teu. É só
uma bruma, nada além de uma bruma.
Com
amor,
Carol.
2 Comments
Amada Carolina, que presente tão lindo você oferece ao Carroberto ( era assim que eu o nomeava quando criancinha) e a mim (a caçula dos seis). Voltei do Rio para Fortaleza em 1995 e acompanhei nosso Carlos até o derradeiro suspiro.
ResponderExcluirA lembrança que guardo bem nítida dele, é na Praia de Iracema, pulando com a nossa cachorrinha Duquesa, pulando da Ponte Metálica e os dois a nadar até a beira da praia. Eu, menina, vinha caminhando apressada, sobre a ponte, seguido os dois nadadores.
Intensa Saudade!
Eterno Amor!
Presente maravilhoso para um paizão excepcional !
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