Tarde Suspensa

Mais um dia. Fez questão de arear de modo impecável o fogão e as panelas. O ladrilho brilhava e exalava um odor forte de pinho sol e creolina. Lavou, passou, engomou. Esperou a hora. Requentou o café, esperou. Quiçá a chegada de uma nova hora traga consigo um inesperado alento. Algo vibrante, novo, uma visita que aceite dividir a xícara e o seu conteúdo.

Lentamente despencaram pingos de um suor salgado e denso de dever cumprido, rolando por seus lábios, queixo, pescoço, peitos. Levantou a barra da saia pra enxugar. Não usava nada por baixo. O calor da casa e do café era acompanhado por um silêncio que excitava seus sentidos. E se alguém escondido num canto secreto da casa visse sua nudez debaixo da saia? Sorriu com volúpia, convencida de que seu corpo era belo e de que era admirado. Por quem? Se a casa estava vazia há anos, emendados em séculos.

No instante seguinte foi possuída por um arrepio de cima abaixo, acompanhado de um desejo despropositado de mergulhar no vazio. Leveza em seu corpo e em seu pensamento. Claridade cega coloriu sua visão já turva, mergulhada em passado e devir. Um caleidoscópio de lembranças distorcidas.
A hora passou, passou. No entanto era ainda tarde alta. Na sua frente um duplo de si mesma: lavada, vestida, penteada, marmórea. Conduzindo uma tarde que não finda e não se rende à noite, pendurada no vácuo. Tarde brumosa de sonho. Então chegara o momento? Vieram buscá-la?

_ Estava certa que você entrava. Ainda que as portas estivessem cerradas e as janelas gradeadas. Escondeu-se e me esperou numa casa sem sótão, sem paredes falsas, sem passagens secretas. Imaginava que fosse homem. Gosto mais de homem. E da aventura de ser levada daqui para sempre. Por que se parece tanto comigo?

Passados eternos segundos de pausa silenciosa, o tal duplo lhe disse enfim alguma coisa numa suavidade antinatural:

_ Vai assim mesmo?
_ Vou.
_ Não tem medo?
_ Jamais.

A visita derradeira se espelhava à sua frente e fazia questão de afirmar sua presença. Consigo as magias e os truques que garantiriam uma digna epifania para a escolhida do dia. Seguindo à risca a cartilha de boa entidade fantasmagórica, procurava evitar conversinhas e explicações, mantendo um ar solene. Sacou do espaço um dossiê com informações sobre a vida da futura candidata. Tratava-se de um pequeno retângulo que mostrava cenas da vida pregressa da candidata a morta. Avisou com pausas e um tom monocórdio de telefonista que a sessão de cinema era mera formalidade e que a outra tinha todo o direito de contestar as informações apresentadas. E neste caso seria constituída uma banca com os melhores advogados, investigadores, promotores e juízes no intuito de solucionar definitivamente a questão.

_ Acabou? É só isso? Depois de todos estes séculos? Volta um pouco, pára aí, aí. Foram levando tudo, pouco a pouco. Nada construído, tudo por fazer. Penso que vivi um sonho da janela.

O tal videozinho em seguida mostrava milimetricamente cada lance de sua vida, desde o primeiro grito já fora do corpo da mãe. Uma sucessão de equívocos.

Atinou que se tivesse implicado menos com os domingos, tudo teria sido diferente. Teria tido um tempão extra. Lamentou por quase tudo, o palavrão não dito na hora certa: tantos caralhos e porras desperdiçados se fossem aplicados naquela determinada ocasião, santo Deus! Tantas vezes teve a cara de pau de botar a sacola em cima do banco vazio: no metrô, no ônibus, na sala de espera. Fora legitimamente amaldiçoada por aquela constelação de velhinhas, barrigudas, até ceguinhos que ficaram em pé enquanto o pacote descansava.

Ela lamentou ter vivido tanto, lamentou até mesmo nunca ter envelhecido. Por que a esqueceram no mundo? Ainda assim quis ganhar tempo, ficar um pouco mais, consertar alguma coisa:

_ Sabe que eu passei de manhã na vendedora de jornais? Tinha as unhas recentemente pintadas de vermelho e não conseguia tirar da cesta o pacote de figurinha autocolante que eu pedira para o menino da vizinha. Disse que ia a um enterro.

Aquilo não fazia sentido, mas precisava ganhar tempo e ia dizendo o que vinha na mente, tentando conquistar a simpatia, um singelo sorriso de piedade ou simplesmente irritar a tal entidade que tinha a desfaçatez de ter a sua cara.

Foi quando notou que o estranho aparelho trazido do espaço pela despachante do outro mundo exibia imagens que não eram da sua vida. Estaria avariado? Eram mortos ilustres, íntimos dela. Com quem ela urdia estreita relação, já que eram consideravelmente mais interessantes que aquele bando monótono de vivos. Mortos que cantavam para sempre com seus agudos, graves, sopranos, contraltos, cheios de frescor. Outros liam em voz alta os seus mais célebres poemas, tocavam plangentes instrumentos musicais. Galãs de cinema que continuamente corriam para os seus braços. Pintores que habitavam suas próprias paisagens pictóricas, para sempre afogados em rios de giz pastel, a se refrescarem em densos bosques de tinta a óleo, fazendo amor para todo o sempre com suas amantes. Como estavam protegidos das 24 horas do cotidiano, do trabalho, do ônibus lotado, da educação dos filhos, do angustiante espaço entre os beijos de amor ardentes!

A despachante estagiária não tinha muito tempo para chororô, arrependimentos e tampouco elucubrações existenciais. Precisava mostrar serviço e ser promovida de posto. Entretanto, justamente por ser nova no ramo acabou por se compadecer da candidata:

_ Você tem a oportunidade de escolher o nada. O nada dos ateus, dos cientistas, dos céticos de carteirinha. Quer? Sem lembranças? Sem pensamento? Sem Jesus Cristo, São Pedro, os anjinhos, o seu pessoal todo? Tem gente que passa uma temporada no inferno por isso. Não é pra todo mundo não. Mas estou vendo que você é gente boa e o seu caso não é tão grave. Oportunidade única, heim? Um nadinha sem passagem pelo inferno!

A iminente falecida disse que ficara tentada e agradecida com a proposta. Mas se recusou, alegando que não seria justo consigo e com os outros. Queria estar lúcida e seu desejo era voltar e fazer tudo de novo. Algo como reencarnação ou coisa que o valha.

_ Sou importante, não sou? Não fui criada à imagem e semelhança de Deus Pai? Posso ser o que quiser. Não sou um mamífero irracional, um inseto, uma bactéria, um vírus, uma célula cancerígena. Sou temente a Deus, lavo, passo, faço exercícios. Canto, choro, até sorrio de vez em quando. Como nenhum bicho jamais fará. Leio a bíblia, pago as minhas contas. Poderia ter tido e criado filhos. Sempre fui monogâmica, tomo banho, não ando despida pela rua, sou...

Num centésimo de segundo suas pálpebras piscaram com força descomunal e se colaram uma à outra ao som da mais alta e dissonante vibração. Sequer o prenúncio das Quatro Estações. O último espasmo, o derradeiro suspiro. Nenhum lamento ou temor acompanhou a cerração que súbito lhe tomou inteiramente, trazendo consigo um sepulcral silêncio.

4 Comments

  1. Entre a lucidez dolorosa de Pessoa e o jogador de xadrez de Bergman, Ana Carolina não se esquiva a colocar o dedo na ferida essencial, a mágoa irredimível de termos comido o fruto da Árvore do Conhecimento.
    Enfrentando a inexorável dor existencial, fá-lo encenando um quadro onírico em que sobressai um seu quase sorriso irônico cheio de uma nobreza estóica, a elegância e graciosidade que transparecem em tudo o que nos tem escrito. Ana Carolina no seu melhor.

    ResponderExcluir
  2. Crescendo....crescendo.....neste encanto....a cada dia fica mais mais saboroso cada pedaço desses manjares que Ana Carolina nos oferta!!!

    ResponderExcluir
  3. Que coisa boa de ler, Carol! Estou acompanhando. bj

    ResponderExcluir
  4. Daqui do relaxar pós recuperação,degusto tua Bela Escrita,Carol. Forte Abraço,Venus Escritora.

    ResponderExcluir