Arábica Típica

Nunca entendi nada deste negócio de café, nem mesmo demonstrei interesse. Até que um dia desses Maria me falou que o adorável casal de franceses havia embirrado com uma certa categoria: “Este tem muita cafeína, é menos aromático, não é arábica, só pode ser robusta...” E eu fiquei com aquilo guardado numa gavetinha acanhada lá embaixo daquela pilha de coisas que eu costumo guardar em mim desde que comecei com este negócio de pensar seriamente nas coisas.
Ontem, me arrumando para o carnaval, antes de enfrentar sozinha o metrô, os mascarados, a folia e o sol a pino, liguei a tv com aquela vontade habitual de ser simples e feliz. E em comum acordo comigo mesma entendi que enfrentar o carnaval de rua logo pela manhã seria um bom começo.
Deparei-me com um alegre repórter que mostrava para o Brasil o cultivo do arábica típica em Taquaritinga do Norte. Aquele nome imediatamente me remeteu à gavetinha lá de baixo. Tenho cisma com palavras: arábica, que nome tão colorido, mandão, decidido. É nome de café, é? É, disse o sorridente moço ao som de um frevo de bloco. Aquele mesmo que eu vivo cantarolando.
O que era só um nome consubstanciou-se em canção, espaço geográfico, cheiro de descoberta. Foi quando o odor concreto do café que eu passara, impregnou-se em mim como um beijo, um carinho ou mesmo uma carícia, fazendo-me acreditar por um infinito instante que não havia sido eu mesma a passar o café, mas outra pessoa, alguém que me dedicava no mínimo simpatia e, na melhor das hipóteses, amor.
Fui tomada de corpo e alma por um grande ufanismo, um regozijo de ter nascido e de viver no Brasil, o maior produtor do melhor café do mundo inteirinho. No meu êxtase privado, um pouco antes de colocar o véu de espanhola com o trocito arriba e não tomar a minha xícara sagrada de café, pois já nem precisava, lembrei do meu primeiro contato com esta bebida que me cerca de mistérios. E como sou dada a despertar em mim mesma esta sensação!
Minha memória, intacta, observava papai de perto, ao lado do seu café melado depositado num copo de vidro vagabundo, sorvido com certo desleixo elegante nas ruas do centro de Fortaleza, quando eu perambulava com ele e tomava ao seu lado o cafezinho, me sentindo importante por dividir este ritual com aquele homem que fora meu pai, na ânsia de sorver além da bebida quente e doce, cada detalhe escancarado e oculto de sua presença humana, que eu de algum modo antevia que me faltaria em breve.
Passado o turbilhão sentimental, ansiei por conhecimento e fui bisbilhotar o café e agora vejam vocês, encontrei mais um motivo para amar Pernambuco: o cheiro e o gosto do arábica típica, descendente direto da primeira safra de café que chegou ao Brasil em 1727, cultivado cuidadosamente como uma gema preciosa, à sombra de jaqueiras, mangueiras, ingazeiras e quiçá ao som do pífano e da orquestra de frevo. Este pequeno infante trouxera de volta os cultivadores da terra que haviam migrado. Mas a terra pernambucana ficara o tempo todo lá, esperando pelo retorno deles, impregnada que estava dos frutinhos, que eram alimentados diariamente pela natureza: o magnetismo das rochas sob o solo, os arvoredos e sua sombra feérica em cujo silêncio trabalhavam fervorosamente pequenas sílfides doidinhas de café ou melhor dizendo, ligadonas de café.
Sabendo que seus bastardinhos abandonados agora são reis, os pais desajeitados colhem os frutinhos grão a grão e os depositam com todo o cuidado em sacas higienizadas para que sigam até o porto de Suape e de lá para o mundo.
Imagino que neste momento, sentados em sua ampla e bela varanda na Côte d’azur, repleta de Mediterrâneo, os meus amigos franceses podem estar tomando em alegre comunhão uma xícara do nosso arábica criado com a ajuda das sílfides que “deram uma força” pra mãe terra pernambucana que havia sido abandonada. Que vexame! Mas mãe é mãe e está sempre lá dando um jeito, mesmo na adversidade, nutrindo e amando os seus rebentos, para que eles cresçam fortes e belos e um dia se tornem reis.

2 Comments

  1. Doce amante da terra e de seus frutos, sensível jardineira de nossas almas sequiosas, só posso ousar te perguntar: Quer tomar um cafezinho gostoso...?

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  2. Lembrei-me de seu AUTOR.... sendo você sua cria, só podia se revelar uma p..... cronista! Saiba que a única pessoa de quem ouvi a palavra idiossincrasia foi Carlos Paiva...ouvi inúmeras vezes. Filha de peixe...... Bjus!
    Lúcia

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