DEIXA CANTAR O SILÊNCIO

Rebentou neste lugar aqui. Não estava só. Tinha um pai e uma mãe que foram até lá e o colheram no penoso nascer. Doaram todo aquele amor que flui sem razão, como criação perfeita.
Via à sua frente a árvore de ramagem densa e escura. Só de olhar, entendia que misteriosamente as raízes colossais se embrenhavam pelo alto acima. E fervilhava uma consciência outra, vibrante, fértil, presente e transcendente.
Tudo o que germina, cresce e transforma. Perdeu a árvore de vista, que virou lembrança, longe... E foi afundando na ilusão do mundo real. Avistou a estrada do amor e da morte, uma só, via de mão dupla. Pensando que tudo podia controlar, correndo no meio da multidão, sem parar para respirar, na ânsia de segurar o vento.
Sabia desde o primeiro sopro que não seria fácil tocar no amor. O amor é como asa de borboleta. Delicado, translúcido, esvoaçante. Amor não se toca com fome brutal, luxúria, força desmesurada. Quem ata o amor ao seu corpo sabe que logo se amofina e vira semente morta. Amor evanesce na tempestade de areia se não for tocado com delicado silêncio, o silêncio harmônico da devoção desprendida.
A morte vivia ao lado do amor. E domava os corpos mutilados e doentes, os corpos febris e abandonados. Muito mais atirada, espetaculosa e articulada que o amor. Então ele foi completamente seduzido por sua desfaçatez. A morte, inteirinha, foi ao seu encontro, se sentou, até acendeu um cigarro:
-O que esperas disso aqui?
- Não espero muita coisa não. Quero unir a minha voz ao som do alaúde que me acompanha.
- Aqui não há música e sabes por que? Porque não há silêncio.
Ele não pensou que teria este colóquio com a morte num dia de semana, entre o intervalo e o segundo turno, mas ficou animado e lhe contou dos acordes que ressoavam em sua cabeça: o alaúde, o címbalo, o shofar.
- Tu tá pensando que é o rei Salomão?
Sorriu, mas se esqueceu da morte. Veio lembrança dela na cabeça. Da órfã que conhecera no tempo em que caía das escadarias de mármore para encontrar o homem muito velho lá embaixo, no primeiro degrau. Lembrou do cordeirinho imolado. Se tivesse tido forças a teria suspendido do chão.
A pérfida dualidade do mundo: sorte, azar, riqueza, pobreza, paz, perdição. Que saudade tamanha que tinha de sua amiga, seu bicho estranho e perfeito como as coisas que são. No meio do deserto, sua ausência era tudo o que tinha: o grande amor, capaz de lavar toda a dualidade. O amor que trazia o acorde mágico, entre os silêncios. O ninho, a árvore, o paraíso, o rei de pés descalços e voz forte como de trombeta, lavando todo aquele sangue.
E então envelheceu. Seus cabelos ficaram completamente brancos, sua pele murchou, suas mãos começaram a tremer. Que sensação maravilhosa! O medo todo se foi. E neste dia, o dia de sua alegre morte, entendeu a inversão do antigo sonho. Não era ele quem tinha caído da escada quando menino. Ele era o velho sábio que esperava a infanta morta, seu pequeno anjo chutado e descartado do mundo. E encheu sua rainha de presentes, como fazem os cavalheiros: o riso, o sonho, o vinho, a flauta, a cura, até o vento ele aparou no ar: -Só existe o bem, minha criança, minha preciosa estrela, só fazemos o mal porque queremos reter o bem todinho para nós... Assim como eu fiz agora, com o vento.
Ela sorriu e queria lhe dizer também do seu amor, mas veio o dilúvio purgando e recriando com violenta afluência de toda a água fria deste mundo. E os dois naufragaram. Ficaram meses à deriva, sem se apartarem jamais. O dilúvio passou. As águas recuaram. No céu claro, o sol e suas cores. E avistaram o jardim. Vez por outra, brincavam com a gravidade. E nem se aperceberam de sua nudez. Porque eram criação perfeita e era bom.

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