Allegro, ma non troppo.
Para os que olham fundo nos
olhos da tristeza.
É
alegre. É triste. É natal. Quando se escreve, a alma vai na frente.
O início. O advento. Há que se ter um referencial afetivo, uma
ponte na memória. Não tem jeito. Depois o texto cria asas e flui,
alcançando as outras almas.
Lido
com palavras e às vezes pelejo com elas quando ficam duras e sem
tempero. Algumas palavras da língua portuguesa me fustigam com o seu
dissabor, embora saiba que a culpa não é da língua portuguesa em
si, a culpa é do método racional, da fórmula, da receita. Não!
Sim! Talvez… me… também… Sabor sem gosto de conjunção é
dose certa para exasperar quem escreve derramando o sentir. E
quebra-se o piano, porra! Porque as notas já estão todas circulando
na corrente sanguínea!
Então
não me venham com tantos mas, portantos, contudos, todavias… E não
visto mais a beca do acho, farta que estou de ser tão eu e de tecer
ilações e de trombetear opiniões... Recuso a palavra acho,
preguiçosa, desanimada, autocentrada, vazia. Sonho que tenho: o de
que todas as palavras um dia virem canção em mim, todinha.
Sinfonia.
O
natal me deixa triste porque eu procuro pelo menino Deus e não
descubro sequer o seu rastro. Escaneio a vida passando por toda a
gente e pairo para observar. Então eu sangro por todos os poros e
junto comigo as cabeças decepadas e os estômagos abertos no campo
de batalha. Um terral carregando o odor da morte.
A
morte é não amar. A morte é a raiva, o medo atravessado, a morte é
o açoite e o olho que desvia do olho e a mão que não acalenta, mas
que sabe fustigar. E a radiante noite que trouxe o amor para encarnar
no mundo ficou parada no tempo. Substituída pela galeria narcísica
do ‘meu mundinho primoroso, genial, moderníssimo', com todos
aqueles lives e selfies e nudes... Como segurar no colo o menino amor
em meus braços se todo o calor se foi? É frieza de geleira dura e
assombrada que ficou. Aqui e ali, alguns raios fúlgidos de
claridade...
Chorei
no dia 24 de novembro quando o meu Cristo se foi. Choro sério, quase
adulto, daqueles que apontam uma pequena esperança no
invisível. Prestíssimo, presto, allegro, allegretto,
andante, andantino, adagio, larghetto, largo? Só, eu, no
mundo… Se eu fosse uma sinfonia, tava tudo bem... Só que eu não
era uma sinfonia e quando o Regente o tomou para si o mundo todo de
lama densa e pútrido ar que ele segurava como quem segura uma
cortina improvisada de teatro feita por criança, caiu sobre a minha
debilidade. Larguíssimo dolente em si menor… E
foi-se toda a bondade e a alegria que não era de quinquilharias que
brilhavam no espaço escasso e enlameado do tempo.
Carlos
foi um bocadinho o Cristo que eu criei para mim. Porque era belo e
tinha aquela expressão no olhar licoroso. Toda pequena vida precisa
de uma face que chegue perto da face do Cristo, já que não se pode
ver o redentor com os olhos deste mundo.
Descobri
o meu transtorno essa semana. Ou seria síndrome? De Ulisses. O de
Homero. O Odisseu das aventuras. Será que foste tu, Carlos, que me
implantaste na alma a aventura? Não caibo neste corpo, papai, não
se o Criador não me aparar as arestas. Tenho ganas de correr e
explorar, às vezes até de guerra eu tenho ganas, de me meter na
armadura e subir no corcel. E como tenho saudades das brumas e de ser
o comandante da caravela!
Eu
não paro aqui dentro. E choro, o choro já crescidinho feito de
esperança pálida e tão fraquinha... Mas que nasceu comigo…Antes
dos meus primeiros passos estava lá, a Claridade Criadora, soprando
o verbo vida e o verbo amor em mim. Antes de descer a escada de 1.000
degraus e rebentar no ventre da mãe. O seu útero era também o
cosmos e as fossas abissais e toda a evolução. Uma coisa só. E não
tinha tempo. Sentia o Maestro criando a mim, a todos os outros irmãos
e lavrando a terra e os peixes fervilhavam! Vi a face do Seu filho
dentro do corpo da mulher que se doou toda, a mulher vestida de sol.
Não precisei de igreja, pois tinha o verbo, que era amor. E talvez
seja por isso, por eu ter tanta certeza Dele, que as forças que não
têm luz me arrastam dia e noite, noite e dia, ralando e fustigando a
carne em medo, ansiedade, raiva, ciúmes, enjoo, impaciência,
maldizer, gula, cupidez, violência… Não é porque a lucidez bateu
à minha porta que estou fora do cortejo de atormentados autômatos,
motum continuum...
E
mesmo assim gosto da palavra esperança. Encafifo com ela. Embirro.
Diminuta, débil, tão pálida. Mas percebi que há uma espécie de
número mágico. Uma prestidigitação quase frívola que aprendi.
Quanto mais eu a doava, mesmo como quem doa roupa velha ou cacareco
quebrado, mesmo sem grande piedade ou devoção, mesmo assim ela
crescia, como erva que rebenta igualmente em terreno infértil.
Nesta
noite só quero entoar a alegria de não ser coisa alguma. O ego
quebrou a minha asa e não posso mais voar e me perder na luz do Amor
que hoje vai nascer e eu jamais precisei tanto abrir mão do pronome
eu. Há um instante sem tempo em que o Artífice das horas e do calor
chama com mais força. Nesta hora a sarça ardente tremula e o
coração volta a bater o som do encanto. E se reconecta. Nua e à
míngua, de todos os anelos deste mundo. Sem nada que não seja
Dele e para Ele.
1 Comments
Seu texto é como navegar por águas claras que escondem surpresas, uma vaga aqui, um turbilhão ali. Sempre um prazer a percorrer...
ResponderExcluir