Desesperança

O remédio fora empurrado goela abaixo. E não prometia cura, tampouco minimizava a dor. Havia de me arrancar nos primeiros trinta segundos do mundo particular onde reina aflita a minha indiferença. Lá onde contabilizei um montão de alegrias com tristezas fundamentadas, desesperos regrados, fatalidades sentidas, espiadas, depositadas em porvir.

Me acostumei a receber convite do sol para um suspiro de olhos fechados. E quando um alísio bate com ternura nos cabelos, tudo vira uma sucessão de sorvetes, de lambidas bestas de cão, riso frouxo, diamantes de orvalho urdidos em manhãs intocadas e a promessa de cheiro bom com canção que chora a gente. É quando uma esperança verde, magra e de olhos descomunais pousa no dedão do pé. Quando acontece, eu fico imóvel. O coração bate forte, seguro a respiração para não perdê-la, não apartá-la de mim nunca, nunca!

Reviravolta no tempo. Pé de vendaval. Quando entrevimos, uma espécie de máquina enfurecida já havia anunciado sua forma funesta. Não houve tempo para fechar todas as portas, nem para tecer o amanhã.

Do rosto exangue de cera, foi arrancado o sorriso da menina. Nunca mais a boneca abandonada no canto, o vestido curto naquele corpo desastrosamente indefinido e belo. Um devir mulher devorando saborosamente a meninice dela.

Foi quando pairou silêncio e perplexidade. Os gritos estacaram no ar. Um terral quente com cheiro de morte suspendeu os meus sentidos logo embotados. Me aproximei da bonequinha descorada e pensei ter visto os seus cabelos virarem um fogo a saltar numa cadência frenética e exasperada.

Quis fugir, quando caiu de meus olhos a máscara de Apolo. Pequenas vidas eram imoladas em nome do desespero do nada, da tristeza sem fim do vazio. Não acordei porque não era sonho.

- Moça! Aqui! Me deixa tocar na sua carne viva!

Numa respiração sofrível e apavorada, respondi baixinho prendendo um choro convulso:


- Se minha vida fosse um rabo de lagartixa, eu dava pra você um pedacinho, menina! Só um pedacinho bastava!

Mas havia outros lá, outros pequenos inacabados, de cabelos de fogo e pele desbotada.

- Dá rabo de lagartixa pra mim também, moça!

- Pra mim!

- Pra mim!

- Dizem que a gente morreu de morte matada!

Ainda tinham cheiro de leite de mãe. E já não viviam mais.

5 Comments

  1. Nossa Carol, forte e ao mesmo tempo singelo. Só você mesmo para tamanha sensibilidade.

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  2. Que nome tem esse estado, etéreo, macabro, desventurado...? que beleza, "sorriso frouxo"!
    -são as idiossincrasias, - diria...
    Cada vez, mais cada vez....parece, que acabei de ler o Gabriel Garcia...rsrsrs
    Beijos!
    P.S. Da Cadeirinha de Arruar, meu bloguinho humildinho, simplesinho...tô mandando ver uma historihas de família do passado remototo..
    http://dacadeirinhadearruar.blogspot.com
    Veja lá!
    +beijinhos...

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  3. Gostei muito do texto, principalmente do ritmo que você impregnou. Muito bom mesmo.

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  4. não sei bem como vim parar aqui, mas certamente fui trazido por bons ventos. ventos generosos esses pois eu precisava de afeto. e o afeto às vezes vem de lugares estranhos, como um texto com conteúdo de caráter perturbador; mas ao mesmo tempo, o seu texto, (não sei como chamá-la), repleto de aliterações, lirismo, adjetivos e afeto (olha ele aí de novo!) ganha forma, faz curva, se enrosca na gente, fazendo as vezes de uma cama quente, de um sorriso acolhedor com açucar na medida certa.
    desculpe os exageros, você nem me conhece, mas não sabe como me ajudou nessa manhã fria. obrigado! :)
    marcio.

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