A Sacoleira

Quando trouxeram a menina embrulhada na manta, o simplório pai desejou para ela quase tudo o que havia desejado para os que nasceram homens. Que ela se casasse, que tivesse filhos, que deixasse tudo na mais perfeita ordem. Esqueceu-se de desejar que vivesse. Possivelmente não agiu de caso pensado, fora só esquecimento.
Mas isso não seria essencialmente um problema, já que sua permanência no mundo ia seguindo seu rumo de modo sólido, prático e sem grandes percalços.
Era toda ela Bonsucesso, no máximo deixava-se arrastar até Ramos e com certa boa vontade do destino, perdia-se por ramificações geográficas que desaguavam nalgum logradouro margeado pelo caminho ferroviário da Leopoldina. Não a alegria e a brejeirice suburbana, não a visita ao mercadinho de flores na Praça das Nações, não o armazém antigo em sua excêntrica e abusada penúria no caminho para a Ilha do Governador, não os meninos no chão com a bola e nos telhados com a pipa, não o casario assobradado de velhas mangueiras abandonadas, morcegos e pouca luz mesmo, não o passeio pelo comércio local com seus artigos ordinariamente convidativos: calcinhas, sutians, top, short de lycra, stresh, vestidinhos floridos, toalha de mesa, toalha de banho, pano de prato, capa de fogão, capa de almofada, enxoval de bebê.
Disto ela passava longe. Desprovida que era de afetos, de verdadeira coragem, de qualquer vontade ou simples alegria. Todavia, impregnou-se do bairro, entranhou-se nas paredes de suas casas, no vício de seus caminhos, na decrepitude de suas vidas.
O marido e os filhos ela os enfeitava e expunha aos domingos, em casamentos e enterros, mas era das entranhas do bairro que ela se alimentava, crescia e avantajava-se, compactando-se. Era surpreendentemente gorda e quadrada, com os quatros ângulos de noventa graus muito bem demarcados.
Numa tarde quente e úmida, a sacoleira deu com ela pela primeira vez. Não pensou que fosse tão dura, nunca tinha visto gente assim. Uma dureza de defunto.
Vendia montes de um pouco de tudo dentro do sacolão. Vivia até com certa dignidade do ofício de sacoleira. A economia de seu negócio era aquecida com as promoções que criava a todo momento: amostra grátis, empréstimo por tempo indeterminado, promoções relâmpago, leve dois pague um, leve cinco pague três. E se soubesse pechinchar, o cliente levava os artigos esquecidos no fundo da sacola pela metade do preço.
Diante da magnífica fragilidade da vendedora de artigos tão supérfluos, aquela mulher avantajada e quadrada, desconsertava-se:
– Isto não serve para nada minha filha, ninguém se interessa. E gritava como se todos ao seu redor fossem surdos.
A sacoleira ficava cada vez mais assustadoramente frágil em sua insistência flexível de bambu, dobrando e voltando, uma debilidade soberba de flor fresca e orvalhada. A outra cada vez mais dura, pesada e quadrada: – Que serventia tem este tipo de coisa? Não se faz nada concreto com isso minha filha!
A abrutalhada fêmea tomava conta de todo o espaço como um trator e a outra, que quase não tinha voz, ocupava o mais parco espaço do ambiente. Era a própria altivez. Suave, cínica e dona de notável insistência descarada:
_ Leve este pequenino, só para experimentar.
_ Este pequenino não me tem serventia.
_ E este um pouco maior, tem uma cor vibrante. Combina com seus olhos.
Insistia tanto que fora capaz de desequilibrar a inepta e inútil existência da outra. Implacável, segurando a respiração, virou de uma vez para o chão o gigantesco sacolão e de lá foram saindo os mais variados artigos. Festa para os olhos de qualquer cristão, cristão novo, evangélico, muçulmano ou macumbeiro: um traje de odalisca cravejado de diamantes, um Clark Gable sem cigarro e sem bigode, iguarias preparadas, como de praxe, pelos deuses, massagens eróticas em mãos firmes de negões do Senegal, outras coisas firmes de negões do Senegal.
A vendedora mais parecia uma sádica. E tem mais. Olha aqui: este casal de grilos nunca falou, mas cantam afinado que é uma beleza, lêem partitura, tocam oboé. Vê o caminho abobadado para os Jardins do Éden? Ou prefere estas esculturas em ouro de Fídias, desencontradas pelos arqueólogos? Neste potinho mínimo, a fórmula da juventude eterna. Uma tragédia grega encenada pelos deuses do Olimpo? Perdoe a indiscrição: o que diria da Vênus de Boticelli em sua cama? Hoje em dia neste negócio é preciso ser moderno, não é? Riu marota, a fresca flor do campo.
A outra não ouviu a gracinha. Estava hipnotizada.
_ Quero aquilo ali! Fingiu que não sabia, mas já tinha certeza do conteúdo da embalagem. Ela era quase doce.
_ Aquilo? Aquilo ali no cantinho?
_ É, aquilo. Pago o preço que quiser.
A sacoleira disfarçava, avexada. Enquanto a parva, vidrada no pacote, arredondou-se. Quase não se via sua imortalidade de pedra.
_ E esta réplica de Paris? Não dura a vida toda, mas tem garantia! Pode até trocar por três semanas de Veneza. Com gôndola e um gondoleiro viril.
_ Não quero. Prefiro aquele outro.
Sua insistência ressaltou na outra a latente maldade. Um sorriso de manequim brotou de uns olhos pequenos, redondos e brilhantes de afilhadinha de Lúcifer.
_ Ah, esse não vai dá mesmo. Hum-hum. Não lhe serve. Não combina.
_ Eu quero Copacabana! Eu quero! Quero todinha, quero tudo que tem lá, quero o mar e o horizonte.
_ Já é tarde Copacabana pra você. Agora não dá mais, o tempo passou. Só isso. Você não vai pegar a coisa, entende...
A outra que não era de questionar, súbito conformou-se. O espetáculo desarrazoado cessou.
_ É, né?
E fechou-se novamente em sua rigidez quadrada, insípida, imortal, sem horizontes e sem saudades de Copacabana.

1 Comments

  1. Caraca... tu ta escrevendo muito... muito bom mesmo... vamos usar.... sensivel, delicado e leve... leve? epa! leve na escrita e pesado no que diz...

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